Um autógrafo do tempo em qur foi escrivã, M. Alcaforado
Cortesia de 100luz
«As Cartas, julgamos, tiveram sucesso, porque não são uma obra literária, afectada por estereótipos, por clichés dos quais o leitor se enfadava, mas sim a verdade nua e crua de umas cartas bem escritas, sem voltar atrás no que se diz e no que se pensa, com verdadeiro sentimento, daí as contradições, os diferentes estados de espírito, e a novidade que, desde o século XVII, seduziu e se fez de imediato moda repercutida pelo mundo inteiro.
NOTA: Extracto da carta nº 34, de Rochers, domingo, 19 de Julho de 1671: «A minha filha, Madame de Grignan, escreveu a Mousse uma carta que lhe devo agradecer tanto como ele. É uma carta cheia de amizade por mim. D'Hacqueville foi bem amigo mandando à minha filha a minha. Enfim, Brancas escreveu-me uma [carta] com tantas provas de afecto, que compensa bem o seu antigo esquecimento. Fala-me do coração em todas as linhas; se lhe respondesse no mesmo tom, era uma [carta] portuguesa». In Nemésio, 1939.
O idioma francês dominava o Ocidente europeu, nos países danubianos ainda se escrevia em latim, o inglês começava lentamente a expandir-se, o centro do mundo era Paris, sede da progressiva Europa das Luzes e da cultura civilizacional da escrita, procurava-se a novidade, o exotismo, até mesmo dentro do seu próprio espaço geográfico. As Cartas portuguesas são oriundas de um país considerado exótico, daí também, além de serem bem escritas, mas não, de certeza, para serem publicadas, o interesse que despertam; Madame de Aulnoy viaja por Espanha, Hubert Vautrin pela Polónia, entre muitos outros viajantes por outros lugares da Europa. O desconhecido está na moda e edita livros de maior sucesso.
De Mariana e da autoria das Cartas
Mariana Alcoforado nasce em Beja, no dia 22 Abril de 1640, filha de Francisco da Costa Alcoforado e de Leonor Mendes, sendo padrinho de baptismo Francisco da Gama, conde da Vidigueira.
Cortesia de 100luz
Mariana entrou para o Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja aos onze anos de idade, o seu dote foi negociado pelo pai, tomou o hábito de clarissa franciscana aos dezasseis anos e nunca mais de lá saiu. Após a sua morte em 1723, foi sepultada em campa rasa, anepígrafe, como era norma, numa das galerias do claustro, local onde ainda se conserva o cemitério das religiosas e boa parte da decoração de azulejaria, pintura e capelas quinhentistas e seiscentistas que Mariana ainda deve ter conhecido.
NOTA: Durante o período liberal, após a extinção das ordens conventuais (1834) e da morte da última freira (1891), o município arrasou 75% do edifício, sendo aproveitado, depois de atribuladas obras que o deveriam adaptar a Sé de Beja, para Biblioteca e Museu Regional (1927). Actualmente só funciona como museu.
O ambiente era em grande parte preenchido pela decoração exuberante, própria do período barroco, até os portais de mármore gotico-manuelinos e os fechos de abobada eram cobertos pela pintura, tal como se vê numa das fotografias de Camacho obtidas no interior do convento, no ano de 1890, para ilustrar a 2ª edição de “Soror Marianna” de Luciano Cordeiro.
O convento, situado intramuros entre as Portas romanas de Mértola e as igrejas paroquiais de S. João (monumentos já demolidos, respectivamente em 1876 e 1920) e de Santa Maria, fora fundado, pelos primeiros duques de Beja. Portanto, o palacete, bastante modificado nos meados do século XIX (aquando da sua adaptação à Sociedade Bejense), onde nascera Mariana, na Rua do Touro, e a Igreja de Santa Maria, onde foi baptizada, ficavam pertíssimo do convento que a recebeu e no qual, uns bons anos depois das Cartas, chegou a exercer as funções de Escrivã e Vigária da comunidade religiosa e também a ser votada, embora sem Sucesso, nas eleições para o abadessado.
Assento do baptismo de M. Alcoforado
Cortesia de 100luz
De Mariana e da sua família pouco ou nada se conhecia até que a "nota" do erudito francês abade Boissonade (1774-1857) divulgada no jornal parisiense L’Empire, em 5 de Janeiro de 1810, desvenda o nome da freira, Mariana Alcoforado e, simultaneamente, corrobora o do oficial francês, Noel Bouton, mais conhecido como marquês de Chamilly, como os intervenientes directos da paixão que motivou as Cartas Portuguesas e o local preciso do acontecimento, num convento da cidade de Beja, situada entre a Estremadura e a Andaluzia, no reino de Portugal. Esta notícia vem despertar e estimular o interesse literário português pelas “Lettres”, para Portugal foi como que uma descoberta, e traz para a ribalta a discussão de um assunto sobre o qual praticamente ninguém falava, o da verdadeira autoria das epístolas, pois era pacífico que Guilleragues, um dos secretários de Luís XIV fora o seu tradutor, tal como constava desde as primeiras edições, atribuição que nem o próprio Boissonade contesta, nem duvida da informação manuscrita que integrava a edição princeps que, então, lhe chegara às mãos. Portanto, a partir do século XIX, irrompe a crítica literária que, essencialmente controlada por homens, se divide entre a aceitação da autoria portuguesa ou francesa das cartas, independentemente de as considerarem escritas por um homem (tendência que se atenua com o findar de oitocentos para se reacender no segundo quartel do século seguinte) ou por uma mulher, e ainda há nos nossos dias, apesar do evoluir dos tempos e da cada vez maior emancipação feminina, quem entenda que uma mulher nunca poderia escrever tais missivas, ainda por cima freira e de Beja, imagine-se!». In Leonel Borrela, Cartas de Soror Mariana Alcoforado, Edição 100Luz, 2007, ISBN 978-972-99886-7-7.
Cortesia de 100Luz/JDACT