terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «A perfeição estava em não se ter originalidade nem ousadia, em buscar novos caminhos, nem experimentar nada que nossos pais não tivessem provado, nem sobretudo levantar a voz em balido diferente do das restantes ovelhas»

Cortesia de assirioalvim

Carta-Prefácio
«O seu nome (João da Costa Neves) figura, por direito próprio, à frente destas laudas de pronúncias, libelos acusatórios, depoimentos, róis de testemunhas, denúncias e inquirições, contestações e audiências, sentenças e acórdãos, muitos esforços e misérias, tentames do espírito para se libertar e viver livre contra uma série de sarrafaçais que o querem sempre manietar e impedir que ele veja a clara luz do dia e respire a plenos pulmões o ar de todos. Procurei trazer até nós estas páginas em que um dos espíritos superiores da nossa terra se vê a braços com mesquinharias e picuinhas, interesses criados e ambições desmedidas de uma classe ou instituição, enredado por liames duros e pegajosos como os do polvo. A ferfos na Inquisição (maldita), com os jesuítas à perna, outros eclesiásticos e leigos a intrigar, parentes a espreitarem-lhe bens, como penou o pobre Damião de Goes!
Bem poderia ele ter-se deixado ficar na Flandres, na paz da família, a gozar os rendimentos, entre gente tolerante e de boa convivência, culta, sem perigo de lhe assacarem o crime de comer carne em dia defeso, de ter falado com Lutero, de receber a hospedagem de Erasmo!
Comerciante e humanista, ansioso de saber amante da buena xira e dos bons livros, é um entre milhares e milhares de outros. Conservam-se os processos na Torre do Tombo que ele também dirigiu; e mal pensaria o cronista e conservador do arquivo, ao solicitar arrumação «pera os almareos onde esta livraria de V. A. há destar» que, muitos anos volvidos, páginas suas angustiosas ali haviam de assentar, testemunho vivo de tamanha intolerância e ódio vesgo da nossa vida de nação, as páginas da sua pessoal tragédia, a par das outras em que ele narrava feitos alheios. Mais ainda:
  • Não é a prisão e tortura de Damião de Goes diferente da de tantos e tantos que ousaram pensar ou agir de maneira diversa do correntio e só consentido.
A perfeição estava em não se ter originalidade nem ousadia, em buscar novos caminhos, nem experimentar nada que nossos pais não tivessem provado, nem sobretudo levantar a voz em balido diferente do das restantes ovelhas. As corridas desenfreadas à procura de novos pastos, o retouçar ledo e forte à saída do curral, saudando a luz do sol e o ar, eram no rebanho português, punidas com o açougue. As chamas da fogueira e os tratos do potro lá estavam para os cordeiros de ânimo mais rebentio.


Cortesia de porabrantes

O acervo de processos inquisitoriais é o principal repositório a que terá de ir bater o estudioso que queira conhecer a evolução portuguesa, desde as Descobertas ao Liberalismo. Como foi lento o caminhar e como se encontram ainda perros os membros tirados à força do lodaçal, após séculos de chapinhar no adro de uma só igreja, com mentalidade de capelinha estreita, assistindo aos mesmos lausperennes, ouvindo os mesmos sermões e julgando-se possuidor na alma miudinha, de todas as verdades do universo. Nos céus e na terra ditavam a lei! Mas haja e vá ao fogo quem a não siga!
O processo da cronista serviu de base ao estudo que Lopes de Mendonça realizou há mais de um século sobre “Damião de Goes” e a Inquisição (maldita) Portuguesa. Saiu em 1859, na tipografa da Academia das Ciências. O mesmo processo foi depois publicado, na íntegra, por aquele benemérito Guilherme Henriques da Quinta da Carnota, a par de Alenquer, no segundo volume dos “Inéditos Goesianos”. Guilherme Henriques copiou-o na Torre do Tombo, menos as peças que Lopes de Mendonça transcrevera já e que ele aproveitou tal como tinham saído. De onde a falta de unidade. Procurara sobretudo fazer obra útil e conseguiu-o. Dar-nos-ia ainda o processo do humanista escocês Jorge Buchenano, atraído a Portugal para ensinar; e depois posto a ferros Deste último fez também uma tradução inglesa.
Outros processos têm sido publicados, principalmente no ‘Arquivo Histórico Português de Braamcamp Freire’ e nos Anais da Academia Portuguesa de História. Alguns deles, como os dos mestres do Colégio das Artes, companheiros de Buchenano, no ensino e na desdita, Diogo de Teive, Marcial de Gouveia e João da Costa, com rigores científicos. Mário Brandão, António Baião e Augusto da Silva Carvalho, nesta tarefa se destacaram. Do Padre António Vieira publicou Hernâni Cidade, no Brasil, a defesa perante o Santo Ofício; mas o processo na íntegra, espera ainda publicação. No Brasil também haviam já sido publicados na ‘Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro’ os dois processos de António José da Silva, o Judeu. Outras peças de processos, ou processos na íntegra, estudos diversos, têm visto a luz da publicidade, em tiragens quase sempre muito reduzidas.

Cortesia de porabrantes

Impunha-se era a publicação sistemática dos processos mais representativos de entre as dezenas de milhares de vítimas da Inquisição (maldita), sejam elas mercadores, advogados, cirurgiões, professores, eclesiásticos, homens do povo, nobres, militares, gente anónima ou da que anda nas bocas do mundo. Mas nem o simples rol dessas vítimas temos publicado! E só nas bibliotecas eruditas se podem encontrar os vários regimentos por que se orientaram os inquisidores. Mais difícil ainda é a investigação quanto às listas dos livros proibidos.
Úteis sem dúvida são as publicações desta documentação inquisitorial com rigores científicos, segundo todas as regras da diplomática e tais como as folhas saíram das mãos dos escribas; mas úteis também nos parecem, e mais indispensáveis, as publicações de documentos que mostrem a vida inquisitorial e o aperreamento das gentes portuguesas, sob a santa (?) Inquisição (maldita), ao comum dos leitores de hoje. Pôr esses documentos na língua de agora, escarolá-los da jaca que impede a penetração no seu âmago, sem de qualquer maneira os deturpar, parece-nos obra da melhor divulgação cultural.
Nesta edição do processo de Damião de Goes, nós não fomos tão longe. Nem isso nos pareceu necessário. Limitamo-nos a actualizar a ortografa e dar-lhe a pontuação de nossos dias. Este simples espanejamento nos pareceu tornar acessível o processo ao leitor comum do século XX. Nem a linguagem envelheceu tanto do século XVI para hoje que uma barrela sumária, como a que fizemos, a não torne inteligível. Há dificuldades aqui e além, sem dúvida. Pontos obscuros também. Mas vêm eles mais da falta de clareza de linguagem de quem se exprime do que dos anos volvidos sobre o processo». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT