Norte de África
«(…) Tudo o que Mirina conseguia
escutar era o grasnar dos pássaros. Vozes... Lilli girou a cabeça para um lado
e outro. Vozes de homens. Esperançosa, Mirina escalou uma rocha grande para
poder ver melhor. Diante delas se descortinava um litoral e uma grande extensão
de água. Ficou aliviada. É o mar!, exclamou ela, apontando sem pensar. É
enorme..., exactamente como a mãe disse que seria. Com excepção da mãe delas,
ninguém da aldeia tinha visto o mar. Mas os anciãos faziam muitas referências a
ele sentados à sombra da figueira, meneando a cabeça para concordar uns com os
outros. O mar era grande, azul e perigoso, diziam, espantando distraidamente as
moscas, e em seus litorais distantes havia cidades cheias de riscos e
sofrimento, cidades povoadas por estrangeiros maus... A mãe sempre rira dessas
palavras, lembrando às filhas que os homens costumavam julgar mal aquilo que
não compreendiam. A cidade não é mais má do que o povoado, dissera ela certa
vez, descartando aquilo tudo com um gesto da mão coberta de massa de pão. Na verdade,
as pessoas lá são bem menos invejosas do que aqui. Então porque foi embora?,
quisera saber Mirina, salpicando mais farinha nas mãos da mãe. E porque não
podemos voltar para lá?
Talvez voltemos. Mas por enquanto
é aqui que a Deusa nos quer. Mirina não havia se deixado enganar. Sabia que a
mãe estava escondendo alguma coisa relacionada à Deusa da Lua. No entanto, não
importava como formulasse suas perguntas, não conseguia obter as respostas que
desejava. Tudo o que sua mãe dizia era: nós somos servas fiéis da Deusa,
Mirina. Ela sempre nos vai ajudar. Nunca questione isso. Conforme as irmãs
avançavam pela vegetação rasteira e pegajosa do estuário, Mirina descobriu que
o mar era surpreendentemente raso e pantanoso. Juncos altos brotavam da água e
não havia ondas; na verdade, a água mal se movia. Não estou gostando disto aqui,
disse Lilli em determinado momento, quando as duas estavam afundadas até ao
joelho na lama e na vegetação marinha viscosa. E se tiver alguma cobra?
Duvido,
falou Mirina, mentindo, enquanto golpeava a água à frente com a lança. Cobras
não gostam de água aberta. Bem nessa hora, vozes as fizeram parar. É a mesma
coisa que eu escutei antes!, sibilou Lilli, aflita, grudando o corpo às costas
da irmã. Está vendo de onde vem? Mirina afastou os juncos com a ponta da lança.
Por entre o emaranhado de caules verdes, pôde distinguir um barquinho com três
pescadores a bordo. Estavam entretidos demais com suas redes para reparar nas
duas. Decidiu que eram trabalhadores, portanto dignos de confiança. Vamos! Foi
levando a irmã pela água, ansiosa para chegar ao barco antes que ele sumisse. A
perspectiva de passar mais uma noite no leito seco do rio ou naquele pântano
coalhado de insectos era insuportável. Aonde quer que aqueles pescadores fossem,
ela e Lilli iriam também». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora
Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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