«(…) Onde tu foste muito tonta, Yvette, repreendeu-a Lucille, a pobre Lucille, que estava muito perturbada, foi em teres-te deixado comprometer ante todos eles. Devias saber que descobririam. Podia ter-te arranjado o dinheiro e poupar-te a todo este aborrecimento. É perfeitamente horrível! Mas tu nunca pensas com antecedência qual virá a ser o resultado das tuas acções! Imagina, a tia Cissie a dizer-te todas aquelas coisas! Que horror! Que diria a mãe, se tivesse ouvido? Quando as coisas corriam muito mal, pensavam na mãe e desprezavam o pai e toda a má raça dos Saywells. A mãe delas, claro, pertencera a um mundo mais elevado, apesar de talvez mais perigoso e mais imoral. Decididamente, mais egoísta, mas com gestos de maior ostentação. Mais sem escrúpulos e mais facilmente levado à desonra, mas menos humilhante. Yvette sempre considerara que recebera a sua fina e delicada carnação da mãe. Os Saywells eram todos um pouco coriáceos e imundos, algures dentro deles. Mas, por outro lado, os Saywells nunca deixavam ninguém ficar mal, enquanto A-que-fora-Cynthia abandonara o pároco com um grande estoiro e deixara as suas criancinhas com ele. As suas criancinhas! Isso era uma coisa que não lhe perdoavam!
De uma maneira indistinta, depois
da discussão, Yvette começou a compreender qual era a sua outra santidade, a santidade
da sua carne e do seu sangue limpos, que os Saywells, com a sua denominada
moralidade, haviam conseguido corromper. Tinham sempre querido corromper, pois
não possuíam crença, eram os descrentes da vida. Enquanto, talvez, A-que-fora-Cynthia
não passara de uma descrente moral. Yvette andou por ali entorpecida,
adoentada, confusa. O pároco pagou o dinheiro à tia Cissie, com grande raiva
dessa senhora. O descontrolado tumor da sua raiva ainda estava agitado. O que
ela teria gostado de fazer era anunciar a delinquência da sobrinha no boletim
da paróquia. Era uma angústia, para aquela mulher destruída, o facto de não
poder publicar essa notícia, para conhecimento de todo o mundo. O egoísmo! O
egoísmo! O egoísmo!
A seguir, o pároco entregou à
filha uma conta-corrente: o que ela lhe devia, os juros, a importância
descontada na sua pequena mensalidade. Porém, lançou a crédito dela um guinéu, que
era a taxa que ele tinha de pagar por cumplicidade. Como pai da culpada, disse
ele, com humor, sou multado num guinéu. Com isso, considero-me ilibado de responsabilidades.
No que respeitava a dinheiro, era sempre generoso. Parecia que, de algum modo,
ele pensava que, sendo liberal com o dinheiro, poderia chamar-se a si próprio
um homem generoso. Mas era o contrário, ele usava o dinheiro e até a
generosidade como um domínio sobre ela. Mas o pai deixou esquecer aquele
assunto. Nesta altura já estava mais divertido do que qualquer outra pessoa, a
julgar pelas aparências. Pensava, ainda, que agora estava a salvo.
A
tia Cissie, contudo, não conseguia libertar-se da sua agitação. Uma noite,
quando Yvette se sentira miserável e fora muito cedo para a cama, quando
Lucille estava fora, numa festa, e quando ela jazia, sem forças nas pernas, que
lhe doíam com uma espécie de insensibilidade e aviltamento, a porta abriu-se suavemente
e apareceu a tia Cissie, a sua face esverdeada e acinzentada a espreitar pela
abertura. Yvette deu um salto, aterrorizada. Mentirosa! Ladra! Patife! Egoísta!,
silvou a maníaca face da tia Cissie. Pequena hipócrita! Mentirosa! Egoísta!
Estupor ambicioso! Havia um ódio tão extraordinário e tão impessoal naquela máscara
cinzento-esverdeada e naquelas palavras frenéticas, que Yvette abriu a boca
para gritar de histeria. Mas a tia Cissie fechou a porta tão subitamente como a
abrira e desapareceu». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926,
Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN
978-972-370-164-7.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT
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