«(…) Ontem à noite, depois de trinta anos, voltei a sonhar com meus encapuzados. Quando eu tinha 4 anos ou até menos, comer era um pesadelo. Então minha avó inventou um método realmente original para que eu engolisse sem maiores problemas a batata amassada. Ela vestia um enorme impermeável do meu tio, colocava o capuz e uns óculos escuros. Com esse aspecto, aterrorizante para mim, vinha bater à minha janela. A empregada, minha mãe, alguma tia, diziam então em coro: chegou don Policarpo! Don Policarpo era uma espécie de monstro que castigava as crianças que não comiam. Paralisado no meu próprio terror, eu só tinha forças para mover as mandíbulas numa velocidade incrível e assim acabar com o insosso e abundante purê. Era cómodo para todos. Ameaçar-me com don Policarpo equivalia a apertar um botão quase mágico. No final, aquilo se tornara uma diversão famosa. Quando chegava uma visita, era trazida até ao meu quarto para assistir aos engraçados pormenores do meu pânico. É curioso como às vezes se pode chegar a ser tão inocentemente cruel. Porque, além do susto, havia minhas noites, minhas noites cheias de encapuzados silenciosos, estranha espécie de Policarpos que sempre estavam de costas, rodeados por uma bruma espessa. Sempre apareciam em fila, como que esperando a vez para ingressar no meu medo. Nunca pronunciavam uma só palavra, mas moviam-se pesadamente numa espécie de balanço intermitente, arrastando suas túnicas escuras, todas iguais, pois era isso o que o impermeável do meu tio fizera. Era curioso: no meu sonho, eu sentia menos horror do que na realidade. E, à medida que passavam os anos, o medo ia-se transformando em fascinação. Com aquele olhar absorto que a gente costuma ter sob as pálpebras do sonho, eu assistia como que hipnotizado àquela cena cíclica. Às vezes, noutro sonho qualquer, eu tinha uma obscura consciência de que preferiria sonhar com meus Policarpos. E, uma noite, eles vieram pela última vez. Formaram sua fila, balançaram-se, guardaram silêncio e se esfumaram, como de costume. Durante muitos anos dormi com um inevitável desconforto, com uma quase enfermiça sensação de espera. Às vezes adormecia decidido a encontrá-los, mas só conseguia criar a bruma e, em raras ocasiões, sentir as palpitações do meu antigo medo. Só isso. Depois fui perdendo cada vez mais essa esperança e cheguei insensivelmente à época em que comecei a contar aos estranhos o fácil enredo do meu sonho. Também cheguei a esquecê-lo. Até ontem à noite. Ontem à noite, quando eu estava bem no meio de um sonho mais vulgar do que pecaminoso, todas as imagens se esfumaram e apareceu a bruma, e, no meio da bruma, surgiram todos os meus Policarpos. Sei que me senti indizivelmente feliz e horrorizado. Até agora, se me esforçar um pouco, posso reconstituir algo daquela emoção. Os Policarpos, os indeformáveis, eternos, inócuos Policarpos da minha infância, balançaram-se e, de repente, fizeram algo totalmente imprevisto. Pela primeira vez, viraram-se, só por um momento, e todos eles tinham o rosto da minha avó.
É
bom ter uma funcionária que seja inteligente. Hoje, para testar Avellaneda,
expliquei-lhe de uma só vez tudo o que se refere à Controladoria Fiscal. Enquanto
eu falava, ela foi fazendo anotações. Quando concluí, comentou: veja, senhor,
acho que entendi bastante, mas tenho dúvidas sobre alguns pontos. Dúvidas sobre
alguns pontos... Méndez, que cuidava disso antes dela, precisou de nada menos
que quatro anos para dissipá-las... Depois, coloquei-a para trabalhar na mesa
que fica à minha direita. De vez em quando, dava-lhe
uma olhada. Ela tem belas pernas. Ainda não trabalha automaticamente, e por isso
se cansa. E também é inquieta, nervosa. Acho que minha hierarquia (pobre inexperiente!)
a coíbe um pouco. Quando diz: Senhor Santomé, sempre pestaneja. Não é uma
formosura. Bom, sorri pousadamente. Já é alguma coisa». In Mario Bennedetti, A Trégua,
Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.
Cortesia de ECdeFerro/JDACT
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