terça-feira, 27 de julho de 2021

Moça com Brinco de Pérola. Tracy Chevalier. «Ela agora está fora, foi fazer compras. Tanneke vai-lhe mostrar a casa e explicar suas tarefas. Sim, madame. Concordei»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Nenhum era como eu esperava que ele pintasse. Mais tarde, descobri que eram todos de outros pintores, ele raramente mantinha seus quadros na casa. Além de artista era comerciante de arte, e havia quadros em quase todos os cómodos da casa, até no que eu dormia. No total, eram mais de cinquenta, embora o número variasse, conforme ele os vendia. Venha, não precisa ficar olhando. A mulher andou rápido por um comprido corredor que percorria um lado da casa até aos fundos. Fui atrás dela até virar de repente para um quarto à esquerda. Na parede em frente havia um quadro que era maior que eu. Mostrava Cristo na cruz, rodeado pela Virgem Maria, Maria Madalena e São João. Tentei não olhar, mas me impressionei com o tamanho e a cena. Meu pai tinha dito que os católicos não eram muito diferentes de nós. Mas nós não tínhamos aqueles quadros nas nossas casas, em igrejas nem em lugar algum. Eu ia ter que ver aquele quadro todos os dias. Sempre chamei aquele lugar de quarto da Crucificação. Nunca me senti bem lá. O quadro me deixou tão espantada que só percebi a mulher no canto quando ela falou. Bem, menina, algo novo para você ver, disse ela. Estava numa cadeira confortável fumando um cachimbo. Os dentes que seguravam o cachimbo tinham escurecido e os dedos estavam manchados de tinta. No resto, era impecável: seu vestido negro, sua gola de renda, sua touca branca engomada. O rosto enrugado era duro, mas seus olhos castanho-claros pareciam simpáticos.

Era o tipo da velha que parecia que ia viver mais tempo que todos. De repente, pensei: é a mãe de Catharina. Não era apenas por causa da cor dos olhos e da mecha castanha que escapou da touca, igual à filha. Tinha o jeito de alguém acostumado a lidar com pessoas menos capazes do que ela, de cuidar de Catharina. Entendi por que tinha sido levada para ela e não para a filha. Embora me parecesse olhar distraída, estava atenta. Quando apertou os olhos, percebi que sabia tudo que eu pensava. Virei a cabeça de forma que minha touca escondesse o meu rosto. Maria Thins deu uma baforada no cachimbo e riu. Está bem, menina. Aqui, seus pensamentos ficam para você. Quer dizer então que vai trabalhar para minha filha. Ela agora está fora, foi fazer compras. Tanneke vai-lhe mostrar a casa e explicar suas tarefas. Sim, madame. Concordei.

Tanneke tinha ficado ao lado da senhora e passou por mim. Segui-a, com os olhos de Maria Thins batendo nas minhas costas. Ouvi ela rir outra vez. Tanneke me levou primeiro para os fundos da casa, onde havia uma cozinha, uma lavandaria e duas despensas. A lavandaria abria para um pequeno pátio cheio de roupas brancas secando. Para começar, essa roupa precisa passar, disse Tanneke. Fiquei calada, embora parecesse que a roupa ainda não estava bem seca pelo sol do meio-dia. Ela me levou aos fundos e apontou um buraco no chão de uma das despensas, com uma escada para descer. Você dorme aqui, anunciou. Ponha suas coisas lá e venha.

Relutante, deixei minha trouxa cair naquele pequeno buraco sombrio, pensando nas pedras que Agnes, Frans e eu jogávamos no canal para acertar nos monstros. Minhas coisas fizeram um som surdo no chão sujo e me senti como uma macieira perdendo sua maçã. Segui Tanneke pelo corredor, para onde se abriam todos os quartos, muito mais quartos que em nossa casa. Ao lado do quarto da Crucificação, onde estava Maria Thins, na frente da casa, havia um quarto menor com camas de crianças, penicos, mesinhas e cadeirinhas com vários objectos de barro, castiçais, espevitadeiras e roupas, uma bagunça. As meninas dormem aqui, resmungou Tanneke, talvez sem graça com aquela confusão.

Voltou para o corredor e abriu a porta de um quarto grande, onde a luz vinha das janelas da frente e batia no chão de ladrilhos vermelhos e cinzentos. O grande cómodo. Aqui dormem o patrão e a senhora, disse ela. A cama de dossel tinha cortinas de seda verde. Havia outros móveis no quarto: um grande armário com entalhe de ébano, uma mesa de madeira branca encostada nas janelas com várias cadeiras de couro espanhol ao redor». In Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.

 

Cortesia de BertrandB/JDACT

Johannes Vermeer, Século XVII, JDACT, Pintura, Literatura,