«(…) Agora todos o tratavam por dr. Fenwood, para Morgan manter a pequena pretensão de que a pessoa que o ajudava com uma intimidade por vezes escandalosa era um profissional da medicina. Existiam muitas ilusões semelhantes naquela casa, com todos se esforçando para preservar a dignidade de um homem bom. A saúde do marquês hoje de manhã está óptima, informou Fenwood. O título lhe subira ligeiramente à cabeça e ele avançava sua opinião como se soubesse a diferença entre a saúde estar ou não boa. A disposição do marquês também está boa. Era essa a informação que Sebastian realmente queria. O irmão com frequência sofria de surtos de depressão. Os médicos verdadeiros haviam avisado desde o início que se tratava de uma coisa comum em inválidos. Entrou no aposento que servia de pequena sala de estar ao amplo domicílio do marquês. O irmão não ouviu a porta se abrir e continuou a ler a correspondência. Havia um tanto dela. A alta sociedade ainda enviava convites, sabendo que nunca seriam aceitos. E Morgan, terceiro marquês de Wittonbury, lia cada um deles, como se pudesse escolher ir a alguns jantares festivos.
A
cadeira de Morgan era recostada à janela, pela qual podia olhar a cidade. Tanto
a mesa como um cobertor negro obscureciam qualquer vislumbre das pernas imóveis
que o haviam feito prisioneiro daquele aposento desde que fora transportado
para casa vindo de uma guerra à qual se juntara nobre e idealisticamente,
tardia e impulsivamente. O facto de Morgan ter comprado a patente com a guerra
em estado tão avançado sempre pareceu a Sebastian uma ironia impossível. Dava
vontade de perguntar se a retirada francesa na campanha peninsular tinha sido
programada para o destino arruinar a vida de Morgan. Sebastian ocupou seu lugar
na cadeira que ficava diante do irmão e se serviu de café da cafeteira que o
aguardava. Nenhum criado ficava por perto, para não importuná-los naquela
rotina que os dois partilhavam. Morgan levantou os olhos da carta que lia. Que
bom que está de volta. Não contava que a chuva me atrasasse ontem. Normalmente,
se faltasse às visitas matinais, Sebastian avisava Morgan. No dia anterior não
fora possível, claro. Sebastian não se importava com esta imposição à sua
rotina. Ele próprio a criara, ao iniciar o hábito e permitir que o irmão
dependesse dele. Actualmente Morgan tinha tão poucos visitantes que só lhe
restava a companhia da família para quebrar o tédio do dia. Não obstante,
enquanto Sebastian justificava a ausência do dia anterior, percebeu que sua
vida mudara em comparação com a do irmão. A paralisia que encerrava Morgan
naquele aposento, vivendo uma vida tragicamente alterada, também mudara
radicalmente o destino de Sebastian.
Estive
perto de Brighton, explicou Sebastian. Fui verificar uma coisa relacionada com
aquela questão das munições. Pode ter-se tratado apenas de negligência, como
todos pensam. Não acredita realmente nisso. Não. Morgan olhou pela janela, mas
na verdade sua visão voltava-se para dentro. Para as memórias da guerra,
suspeitou Sebastian. Morgan seguira o escândalo de perto, incrédulo com os
relatos jornalísticos de uma companhia que ficara indefesa por causa de má
pólvora. O marquês de Wittonbury quis que fosse feita justiça aos soldados
mortos e Sebastian quis que o irmão conhecesse a satisfação de ver os camaradas
de armas finalmente vingados. Ficou sabendo de alguma coisa? Posso ter
descoberto um homem que sabe alguma coisa. Ele pode ter uma informação que
acabe revelando a verdade. Finalmente. Morgan assentiu distraidamente. Pegou num
dos jornais impecavelmente passados a ferro que aguardavam a sua atenção. Sebastian
fez o mesmo. Aquelas visitas haviam-se tornado rotina. Ritualizadas.
Nossa
mãe esteve aqui de visita ontem à tarde, comentou Morgan enquanto perscrutava o
periódico. Queria falar sobre você. Bom, aquilo não era rotina. Mesmo? A-hã...
Quer que eu lhe diga que deve casar-se. Escolheu várias moças que se adequam. Tenho
certeza de que ela pensa que sim. Eu disse a ela que não devia iludir-se e
pensar que tenha mudado tanto assim. Sugeri que aquilo que ela vê como uma nova
página é apenas uma película que obscurece as folhas antigas. Discrição não é o
mesmo que arrependimento ou mudança. Obrigado. Ficou muito decidida e imperiosa...
Bom, sabe como ela é. Tem visitado muito estes dias? Morgan encolheu os ombros.
Mais do que antes». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN
978-989-232-372-5.
Cortesia de EASA/JDACT
JDACT, Madeline Hunter, Escrita, Saber,