sábado, 16 de abril de 2011

António Arroyo: A Viagem de Antero de Quental à América do Norte. Parte IV. «...o vento acalmava completamente, mas o barómetro descia sempre e o aspecto do céu era cada vez pior. ...Perderam a gávea logo no começo, mais tarde foi-se a vela grande e descoseu-se o estai; mas iam-nas substituindo como podiam...»

Cortesia de mundolusiada

«Entretanto o navio contratava em Brooklyn carga completa de trigo ensacado para o Porto e, concluído o carregamento, fazia-se de vela em direcção à invicta cidade da Virgem. Foi isto em fins de Setembro.
Ora, paralelamente à costa oriental da América e a menos de um grau, corre um banco de areia submersível, cortado, proximamente a meio, no espaço duma milha. Navegaram pois para o Norte, ao longo da costa e á distancia dumas 5 ou 6 milhas, com o fim de contornar o banco nesse ponto e aí tomarem o mar alto. O vento era firme, da terra; mas o barómetro pôr-se a descer dum modo assustador. No horizonte, a sueste, pequenas nuvens acobreadas, anunciando forte tempestade. Era de tarde, quase ao sol posto.

Joaquim Negrão
Cortesia de antoniocarneiro

Negrão disse então ao piloto:
  • Se venta de sueste ficamos sem nos poder safar da costa.
  • O caso não me parece sério, objectou o piloto. Não vê todos esses navios que seguem connosco no mesmo sentido?...Viam-se efectivamente uns vinte barcos, entre grandes e pequenos. Negrão, entretanto observou-lhe:
  • Talvez você tenha razão. Mas eles são de aqui, conhecem os buracos da costa e sabem onde se abrigar, se precisarem. Nós é que não estamos no mesmo caso.
E, debaixo desta impressão, afastaram-se mais de terra, sondando sempre á procura do intervalo existente entre os dois troços do banco. Não havia arrebentação. Ao cabo de certo tempo encontraram o ponto desejado e meteram para fora, saíram para o mar alto. E, como quem foge. foge quanto pode pondera Negrão, mandou largar todo o pano. Foi fugir a valer, aproveitando o vento de terra que continuava soprando. Para a noite até refrescou um pouco. E correram para fora quanto puderam, conseguindo, aí da uma para as duas horas da madrugada, achar-se a mais de sessenta milhas do banco.
Foi o que lhes valeu.

Nova York
Cortesia de artgeist

Nesse instante o vento acalmava completamente, mas o barómetro descia sempre e o aspecto do céu era cada vez pior. Ferraram todo o pano, ficando apenas em panos reais. Até que o navio de todo parou.
De repente ouvia-se porém ao longe um ruído estranho. Era a entrada do novo vento de sueste que lhes caía em cima «como uma trombada». O patacho que, como se sabe, era um magnífico barco, resistiu sem contudo lhe dar a popa. Temiam ficar a sotavento. E assim se aguentaram umas setenta horas, que foi quanto durou o ciclone. O vento conservou constantemente a mesma força e impetuosidade. Como é de supor, a tormenta veio acompanhada do habitual cortejo de raios, chuva e remoinhos de vento que rondava, repetidas vezes durante um quarto de hora, por oeste e sul. Perderam a gávea logo no começo, mais tarde foi-se a vela grande e descoseu-se o estai; mas iam-nas substituindo como podiam. A vaga, que era enorme, varria, de quando em quando o convés, e até o arrombou por cima da câmara do capitão, inundando-a; como já havia arrombado uma caixa que fora trazida do porão, onde, imitando o celebre canhão de Victor Hugo, andava dum lado para o outro, a fazer das suas. A caixa, que ficara desde então fortemente amarrada ao convés, deu lugar a um valente susto por que se passou a bordo.

Cortesia de trintaanosdepois

As bombas, como é natural, funcionavam sempre; e, num dado momento, vieram dizer ao capitão que aágua trazia trigo consigo. Parecia pois que o mar por completo invadira o barco. Mas Negrão pôs-se a observar detidamente o trabalho das bombas e reparou, ao cabo dum certo tempo, que já não saía trigo. Foi o caso que, depois de se proceder ao carregamento das sacas, um marinheiro, ou mais, tendo varrido e apanhado o grão que sempre cai nessa ocasião, o havia guardado, para dar ás galinhas de bordo e juntamente com outros objectos, na caixa que trouxeram para o convés e que uma pancada de mar reduzira a bastilhas. E foram os grãos que lá estavam, espalhados novamente na coberta, que as bombas expulsavam de envolta com a água do temporal». In António Arroyo, University of Califórnia Libraries, PQ 9261 Q34Z5ar, AA 000 453 081 2, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte, Edição da Renascença Portuguesa, Porto.


Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT