Cortesia demundove
Com a devida vénia a Margarida Vieira Mendes.
«Entremos então nos problemas editoriais da Clavis. Primeiramente questões de método. Não cabe na metodologia, de crítica genética por se tratar de um caso de mobilidade na transmissão de um texto, mais do que propriamente na criação ou produção textual; na falta de qualquer autógrafo ou idiógrafo, o que temos é a presença de refundições, de testemunhos textuais. Os testemunhos que até agora conheço são doze. Vi-os todos (de visu), excepto dois que estão no México. É possível que haja mais manuscritos, mas não serão necessários. Porquê? Porque já estudei e decifrei as famílias, o códice optimus e os dois que servirão para ajudar a reconstituir o texto, o mais próximo possível do que terá sido o original.
Lembro que os locais onde se encontram os manuscritos são:
- Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
- Biblioteca da Ajuda,
- Roma (em três arquivos),
- Loyola,
- México.
Cortesia de mylojj
A Clavis, ou De regno Christi in terris consummato, que certamente será o último título escolhido por Vieira, insere-se dentro do campo de problemas que a crítica textual enfrenta na edição de borrões, das obras manuscritas não acabadas, capelas imperfeitas, embora não exclusivamente.
Começamos a descobrir, com a tradução do último tratado, que é mais literária do que terá pensado Barbosa Machado na Biblioteca Lusitana, onde a classifica no género da exegese ou comentário (que aliás não deixa de ser).
A história da feitura da Clavis anda mal contada e empolgada, e Vieira foi responsável, pois sempre anunciou obras espectaculares que só tinham título ou fachada, ou fragmentos, ou plano, e sobretudo intenção, muita intenção, de intervir no estado das coisas do tempo. História do Futuro e Apologia, por exemplo, que são discursos incompletos, mas de acção e circunstância, e agora, por efeito perverso da edição, são lidos como livros inteiriços e não como obras dotadas de intencionalidade mas fragmentárias.
Cortesia de wook
De facto, Clavis, redigida em Roma, não é coisa de cinquenta anos, nem trinta, como dizia Vieira. Só em Roma quis ver as suas proposições, proposições anteriormente condenadas pela «maldita» (JDACT) Inquisição portuguesa, aprovadas pelo Papa, e para tal redige rapidamente uma obra. Mais uma vez, intenção e circunstância. Como conseguiu um Breve que o isentava da «maldita» (JDACT) Inquisição, resolveu regressar. Terá havido problemas e discussões por causa de uma parte da Clavis que trata da conversão dos judeus, que foi um combate romano do padre António Vieira, como é sabido. A questão da restituição dos ritos judaicos com outra simbologia tornou-se controversa na corte papal.
Existe uma descrição do original feita pelo Padre Casnedi em 1714, que aponta as lacunas, imperfeições, falta de capítulos, nos Livros II e III, estando apenas o Livro I bem acabado, com doze capítulos.
Cortesia de auladeliteraturaportuguesa
Excerto de quatro comentários.
1. Várias vezes o jesuíta alude ao fim do século, como hoje diríamos. Neste tratado, que agora começo a conhecer, expõe um grande número de questões sobre a pregação universal do evangelho, dado que, segundo a doutrina escatológica cristã, ela é uma das condições para a consumação do reino de Cristo.
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2. O que me parece mais importante e muito belo é que, na sua busca do sentido anagógico, de vai preferir sempre textos de profetas e apóstolos, os fundadores, os primeiros: salmos de David, Isaías sobretudo, e S. Paulo. E insiste sempre no sentido literal. Se usa os exegetas, comentadores e teólogos como Suárez, é para os refutar e condenar como obscurecedores, lançadores de confusão e encobridores do verdadeiro sentido dos profetas. Os que só fazem atrasar o conhecimento.
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3. Outro fundamento sólido usado pelo autor é a experiência vivida pelo próprio jesuíta, em que muito insiste. Parece-me o reverso do célebre Sermão do Espírito Santo e da imagem optimista da conhecida e genesíaca estátua do índio-pedra onde a arte apostólica corrige a natureza. As razões desse sermão eram pragmáticas ou perlocutórias, como se sabe, questão de incutir ânimo aos missionários.
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4. Noto ainda que mais importante é descobrirmos as fontes semânticas, e mesmo lexicais e imagéticas, da representação que Vieira tem dos índios e que expõe de maneira muito literária ou visionária em alguns sermões. O seu retrato do índio não o fez directamente, por observação, mas pelos livros. Apercebemo-nos da visão diferida ou mediada e classificada que ele tem do índio, ou das duas classes de índios, baseada nas leituras de representantes da corrente biblista de que falou Marcel Bataillon, como Acosta, Solórzano Pereira, e também portugueses do século anterior, como Manuel da Nóbrega e Pêro de Magalhães Gândavo.
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In Margarida Vieira Mendes, O Relevo de Chave dos Profetas, Fundação Calouste Gulbenkian 2006.Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian/JDACT