Cortesia de dightonrock
«Mas, antes de tudo, Camões teve de possuir portentosa memória, porque lhe seria difícil ter à mão ao mesmo tempo tantas obras. No naufrágio salva o Poema; mas, o material bibliográfico de que se servia? E não se esqueça o costume dos escolares de então de reunir alfabèticamente sentenças e exemplos em cadernos escolares que lhes serviam pela vida fora. Muitos livros práticos desta feição foram publicados na Europa.
Escusado seria dizer-se que Camões conheceu todas as crónicas do Reino, além das ultramarinas de Castanheda, Barros e Gaspar Correia (esta em manuscrito). Conversou com Diogo do Couto. Conheceu opúsculos de André de Resende, mormente o seu poema Vincentius. As crónicas ultramarinas deram-lhe o fio da história:
- a viagem do Gama;
- as crónicas do Reino deram-lhe a história poetizada do Reino e sobretudo os episódios com que realça a narrativa.
Muito se discutiu a legitimidade da intervenção dos deuses do Olimpo, mas nunca se explicou como é que o Poeta havia de deificar os Lusitanos sem que os próprios deuses interviessem na acção. Os Portugueses – ainda antes de Camões – sentiam-se verdadeiramente ufanos da descoberta de tudo o que não era Europa (um mundo imenso de que a Europa não tinha notícia) e colocavam as façanhas dos descobridores e conquistadores acima de tudo o que fora feito pelo mundo greco-romano. Alexandre, César e Trajano aparecem em Os Lusíadas como grandes monarcas ofuscados pelos Portugueses. Este dado é fundamental para se entender o que o Poeta quis fazer.
Cortesia de icicomup
Não basta afirmar-se que quis exaltar os Portugueses. É pouco. Quis deificá-los; quis fazer deles uma nova raça de deuses. Baco – magnífica aceitação por Camões dos direitos de Baco sobre a Índia – será o grande vencido – e após porfiada luta. Os direitos de Baco sobre a Índia vinham de longe.
Arriano conta, a propósito da intenção de Alexandre de dominar os Árabes, que estes só adoravam dois deuses: o Céu e Baco. O Céu, porque, contendo os astros e o Sol, era causa dos maiores, mais visíveis e numerosos benefícios dos homens; Baco, por ter conquistado os Índios. (Baco submetera a Índia pela força das armas.) «Pois eu», afirmou Alexandre, «posso ser a sua terceira divindade, pois as minhas façanhas de modo algum são inferiores às do semideus». Camões escolheu como inimigo dos Portugueses aquele mesmo que os Árabes tinham adorado. E o ódio de Baco aos Portugueses vem de saber que há-de ser destronado por eles. Todos os ardis postos em execução por Baco não atingem o seu objectivo. O último – ter aparecido em sonhos a um sacerdote maometano para indispô-lo contra os Portugueses (VIII.47-50) – precede a apoteose dos heróis. Baco desaparece obscuramente antes, sem deixar qualquer rasto da sua insatisfeita vingança.
Pensamos hoje que Baco não merecia tais honras, mas no tempo de Camões Baco era uma entidade muito importante. Barros, no princípio da Ásia, ao falar dos feitos dos Portugueses, diz que estes, além do mais, foram «despregar aquella divina & real bãdeira da milicia de Christo (que elles fundaram para esta guerra aos infieis) nas partes Orientaes da Asia, em meyo das infernaes mesquitas da Arabea, & Persia, & de todolos pagòdes da gentilidade da India daquem, & dalem do Gange: partes onde (segundo escriptores Gregos & latinos) excepto a illustre Semirames, Bacho, & o grande Alexandre, ninguem ousou cometeras» (I, fol. 3).
Cortesia de lerparacrer
Se Baco é o grande inimigo, Vénus é a grande e solícita companheira dos Lusitanos, seguida das suas Nereidas, não menos solícitas e prestantes. O oceano de Camões está coalhado de ninfas. São no Poema a encarnação da beleza pagã. Obedecem a Vénus e substituem-se no Poema às forças naturais, e com tão invisível traça que os Nautas só se darão conta da sua existência muito mais tarde, na Ilha dos Amores.
A presença de Vénus no sexto céu, queixando-se a Júpiter das insídias de Baco, a intervenção de Vénus e das suas Nereidas para impedir a entrada das naus em Mombaça, onde seriam destruídas, a sedução dos Ventos para os impedir de prosseguirem a tempestade são trechos de uma beleza formal insuperável, em que a pena do Poeta atinge a visualização de um verdadeiro pintor. Com que simplicidade o Poeta une a realidade e o mito nestes versos:
Destarte despedida a forte armada
As ondas de Anfitrite dividia,
Das filhas de Nereu acompanhadas,
Fiel, alegre e doce companhia ...
(I.96.1-4)
Um mundo familiar, a facilitar a empresa dos nautas!
Com a Ilha dos Amores Camões atinge o clímax da voluptuosidade pagã. Creio não ser preciso subtilizar a exegese para converter o deleite carnal em gozo filosófico. Vénus não é Platão! A Ilha é levada por Vénus ao encontro dos mareantes, os «segundos Argonautas», para que estes possam «refocilar a lassa anidade» (IX.20) porque a deusa quer:
... que haja no reino neptunino
(onde nasceu) progénie forte e bela
(IX.42.1-2)
Só é possível dar origem a novos seres pela geração. Uma raça valorosa vai nascer deste conúbio entre os fortes barões e as nereidas. Sou dos que pensam que o Poeta, no seu regresso à Pátria, foi convidado pela censura a dar um sentido espiritual (as «deleitosas honras») às delícias carnais da Ilha de Vénus. A verdade, porém, é que no Poema tudo toma um ar esponsalício:
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia
Em vida e morte, de honra e alegria.
(IX-84.5-8)
Cortesia de xofortenet
Ainda não aparecera a alegoria.
O mito não se corrompe pelo facto de o Poeta ter sublimado a carnalidade do episódio, como não se corrompe o sentido da palavra «amante» pelo facto de se tratar de uma união sensível:
Quando as fermosas ninfas cos amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes ...
(X.2.1-3)
Ali em cadeiras ricas, cristalinas,
Se assentam dous e dous, amante e dama;
(X.3.1-2)
O mundo antigo continuava-se na gente lusitana!
E não esqueçamos que ao despedirem-se da Ilha de Vénus os nautas, entre eles os já nossos conhecidos Veloso e Leonardo
Levam a companhia desejada
Das ninfas, que hão de ter eternamente,
Por mais tempo que o sol o mundo aquente.
(X.143.64)
O eixo do Poema é evidentemente a viagem do Gama, mas Os Lusíadas não são a viagem do Gama. Os Lusíadas são todos os seus reis, todos os seus heróis, todos os seus gloriosos barões. Ora o Gama, na sua notícia ao rei de Melinde, só poderia dar conta dos que enobreceram a Nação até aquele momento em que fazia a sua exposição ao rei de Melinde, começando naturalmente pelos reis e pelos que estiveram mais próximos dos reis. Foi uma narrativa poetizada da história antiga de Portugal, a começar em Luso e a acabar em 1497, com D. Manuel! Ficariam esquecidos muitos «barões». Tal como Virgílio, Camões aproveitará os rogos de Vénus a Júpiter, a favor do seu Eneias, para que o pai dos deuses possa predizer alguns feitos heróicos (II.44-54); virá depois o Adamastor, também dotado de terrífico dom profético e que anunciará ao Gama e seus companheiros a morte de Bartolomeu Dias (1500), de D. Francisco de Almeida (1510) e o naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda (1552). Em Calecute, o Catual ouvirá de Paulo da Gama as explicações acerca das figuras que estão pintadas nas bandeiras das naus.
Aqui não se trata de predições; e é curioso acentuar que, começando nos fabulosos Luso e Ulisses, como antepassados dos Portugueses, se estenderá até os condes D. Pedro e D. Duarte de Meneses, fronteiros de Ceuta, ficando incluídas na descrição uma série de figuras medievais. Mais tarde, uma ninfa vai vaticinar os feitos futuros dos Portugueses, particularmente dos heróis e governadores da Índia (até D. João de Castro e seus filhos). Com a descrição do orbe terrestre, especialmente as terras de África e da Ásia que os Portugueses virão a possuir, ficam nomeados todos os grandes ilustres e os lugares que foram teatro de seus feitos. São estes Os Lusíadas». In Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.
Cortesia de Instituto Camões/JDACT