Cortesia de comlivrosteresa
Ode à noite
Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
- ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
- como eu - insónia, pesadelo, golpe baixo).
Existem, claro, raparigas louras um tanto
heteredoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita - o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.
Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
- ou o seu contrário, pois só ali (anónimo
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.
O resto, a vida, fica para outra vez.
Manuel de Freitas
Terceiro direito
O inferno, aqui. Deve ser normal.
Um choro de criança, no andar
de cima, sobrepõe-se à música
que não ouço e que é talvez de Brel
(nenhum quarteto de Mozart serviria agora
Há dias assim. Os guindastes
da insónia não seguram a voz, desastre
anunciado pela teimosia de pássaros
suburbanos. Coisas de muito esquecer,
se eu pudesse. Mas o corpo hesita,
volta a ser o envelope vazio
de um destino por assinar - e que
nada tem, neste momento, de «literário»,
Sinto a luz na garganta, sufoco
discretamente, alheio ao excesso .
de imagens que me traz o dia. ,
A alegria, se quiserem, fica para mais
tarde. Aqui, de novo, morre-se muito mal.
Manuel de Freitas
Cortesia de ruadaspretas
Cortesia de Poesia e Prosa/JDACT