quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

José Mattoso. A Escrita da História (teoria e métodos). «Não ignoro as dificuldades deste ponto de vista. A pretensão de totalidade desafia a capacidade da imaginação humana. Pessoalmente, creio que só é possível abarcá-la tomando uma atitude a que não sei chamar outra coisa senão "contemplativa"»


Cortesia de abracadabraspace

«Antes de mais. portanto, o conhecimento do passado. Começarei por dizer que não o concebo como uma operação equivalente à simples selecção do conteúdo "útil" dos documentos onde ele está como que congelado. Para mim, os documentos só têm sentido quando inseridos numa totalidade, que é a existência do homem no tempo. Desde o momento em que os considero como os vestígios desse itinerário temporal do homem, e por tanto como um meio concreto a partir do qual se torna existencialmente possível descrevê-lo, todos os elementos deles extraídos se situam na escala de uma incomensurável relatividade. Este alargamento da escala às dimensões da Humanidade inteira e da totalidade do tempo, obriga, desde logo, a procurar o sentido dos actos humanos na sua globalidade, ou seja, muito concretamente, a não dar mais valor à queda de um império do que ao nascimento de uma criança, nem mais peso às acções de um rei do que a um suspiro de amor. Ao dizer isto, prevejo, desde logo, avalanches de objecções. Vêm, antes de mais, dos próprios historiadores, sobretudo daqueles que distinguem cuidadosamente (ou que tentam distinguir, sem nunca chegarem a conclusões válidas e claras), os factos "históricos" dos "não históricos". Outrora. «factos históricos» eram só as acções dos chefes políticos, dos génios ou dos heróis. Desde que a história da humanidade se alargou, tudo tem dimensão histórica:
  • desde a forma de enterrar os mortos até à concepção do corpo, desde a sexualidade até à paisagem, desde o clima até à demografia.
E todavia, pouco importa, como exemplificou Henri Marrou, que, no dia 16 de Agosto de 1610, um habitante de Saint-Germain des Prés, ao passear na rua, tenha apanhado na cabeça com um balde de água suja "un pot de grosse et menue matière ordre puant". Mesmo que este acidente tenha desencadeado graves questões, o que o torna objecto da História não é o facto em si mesmo, mas o que ele eventualmente possa representar para o destino da Humanidade. Este destino é, por isso mesmo, o único fio condutor na busca de significado da infinitude de moléculas factuais que engrossa o oceano da História. Não ignoro as dificuldades deste ponto de vista. A pretensão de totalidade desafia a capacidade da imaginação humana. Pessoalmente, creio que só é possível abarcá-la tomando uma atitude a que não sei chamar outra coisa senão "contemplativa".

Cortesia de imprensauniversitaria

Tenho-o dito várias vezes, e talvez seja agora a ocasião de me explicar melhor. Na verdade, só o contemplativo pode tentar estender o olhar até aos limites da História e do Universo, e pretender envolver tudo num único golpe de vista. Afastemos, para não perturbar esta ideia, os conceitos vulgares acerca da contemplação como passividade, como irrealismo beatífico, ou mesmo como busca exclusiva do transcendente, por oposição ao real, ao concreto ou ao ser criado. Na minha maneira de entender, o melhor exercício contemplativo é justamente a observação atenta do real, da "espantosa realidade das coisas", como diz Alberto Caeiro. Quer dizer, uma observação que procura captar todas as suas dimensões:
  • não apenas as aparentes e imediatas, mas também as ocultas, não apenas as mensuráveis, mas o que as coisas evocam ou simbolizam, não apenas o que nelas é classificável segundo os parâmetros das diversas taxonomias científicas, mas também o que só pode ser captado num registo poético.
A apreensão do real em todas as suas facetas implica que se ponham em jogo todas as faculdades de observação, não apenas as racionais, mas também as volitivas, o que corresponde a dizer que os sentidos do corpo e do espírito se deverão abrir de tal modo ao real, que ele seja como que interiorizado, absorvido, captado em nós mesmos. Este exercício é, por isso, um acto de amor. Um amor na plena acepção da palavra, isto é, que não é contaminado pela tentação de possuir, dominar ou destruir, mas que mantém intacta a alteridade, a radical separação do sujeito e do objecto, e que tenta estabelecer a relação com ele através do verbo interior, em todas as suas dimensões:
  • o cântico de admiração, o diálogo do gesto, a descoberta do símbolo, o desencadeamento da palavra poética.
Tudo isto são analogias para tentar exprimir o indizível, porque a totalidade do real só pode ser apreendida e transmitida por processos simbólicos ou por um tipo de linguagem cujo código é infinito mas suas expressões e recursos, como é a poesia. São analogias, também, para poder definir a relação contemplativa com uma realidade ainda mais inacessível do que a que os sentidos podem captar na sua imediaticidade, quer dizer, aquela que já foi devorada pelo tempo, a de outrora, e a que todavia deixou nas coisas, e portanto no presente, as marcas da sua passagem. A necessidade de um olhar ainda mais atento, mais lúcido e mais apaixonado é, por isso mesmo, maior. Nada daquilo que se quer conhecer existe já. Só o podemos apreender por meio de indícios dispersos, que têm de se aproximar mentalmente, e que, uma vez reconstituído, será sempre irredutível ao discurso que jamais se possa fazer sobre ele». In José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária, editorial Estampa, Lisboa, 1988.

Cortesia de Imprensa Universitária/JDACT