segunda-feira, 12 de março de 2018

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Deu com o cotovelo na barriga do remador. Ouviu-o produzir um gemido abafado, mas ainda assim o outro manteve-o inexoravelmente bem preso»

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«(…) O homem com as garras, que fingia pertencer à Inquisição (maldita). Pelo canto do olho, Antero observou as escadas de corda. Resvalavam de um lado para o outro, por cima da amurada. Eram os remadores que estavam a subir para bordo. Deveriam surpreendê-lo por trás. Com o cotovelo desferiu um golpe na laringe do estranho. O falso inquisidor agarrou-se de imediato ao pescoço e cambaleou para trás, como que a estertorar. Saltando três passos bem largos, Antero estava já junto da amurada. Passou as pernas para o lado de fora e deixou-se cair. A superfície da água rasgou-se sob o seu peso, como se de um tecido se tratasse. O rio recebeu-o com um abraço gelado. Diante dos seus olhos, um turbilhão de bolhas de ar e partículas em suspensão girava na água. Voltou à superfície, resistindo à ondulação, para inspirar uma golfada de ar. Com toda a pressa que conseguiu afastou-se do navio a nado. A partir das escadas de corda os remadores lançaram-se à água e seguiram no seu encalço. Eram bons nadadores. Com duas vigorosas braçadas Antero conseguiu elevar a parte superior do corpo acima da superfície da água. Com o punho, aplicou um golpe na têmpora do remador que mais de perto o perseguia. Uma dor invadiu-lhe a mão, mas o homem ficou para trás, deixando-se afundar. As pálpebras tremeram-lhe, era evidente que lutava para se manter consciente. O segundo remador aproximou-se. Antero descreveu um movimento na direcção deste, mas infelizmente a água travou o ímpeto da pancada que desferiu. Com os braços, o remador envolveu a cabeça de Antero e forçou-o a mantê-la debaixo de água.
Deu com o cotovelo na barriga do remador. Ouviu-o produzir um gemido abafado, mas ainda assim o outro manteve-o inexoravelmente bem preso. Antero aproximou as suas mãos dos braços cruzados do remador e tentou afastá-los. Não conseguiu, porém, libertar a cabeça. O ar já escasseava. Revolta, a água estava já cheia de espuma. Mergulhou os dentes na carne do braço do outro. Um gorgolejar de dor. O amplexo do remador enfraqueceu. A água começou a ficar tingida de sangue. Antero mordeu de novo com força. Conseguiu libertar-se. Embora mal conseguisse aguentar por lhe faltar o ar, teve de mergulhar ainda mais fundo. Nadou debaixo de água na direcção do imponente bojo do Fortune. Os seus membros estremeciam. Precisava de ar! Engoliu alguma daquela água salobra. Com as últimas forças que lhe restavam mergulhou sob o casco da embarcação. A madeira escura estava repleta de algas. Conseguiu aperceber-se da presença de mexilhões negros. Esfolaram-lhe a pele das costas, provocando-lhe lacerações, quando roçou no casco ao atravessar para o outro lado do navio.
Antero sentiu que começava a perder os sentidos. Ao nadar, os movimentos foram-se tornando mais breves, os braços e pernas mexiam-se como que convulsivamente. Por fim, voltou a subir até à superfície. Foi junto ao leme que reapareceu. Sentiu um acesso de tosse que se anunciava, mas esforçou-se por não tossir. Embora se sentisse estonteado e os pulmões parecessem estar em brasa, procurou manter uma respiração regular. Assim tão junto da popa, do interior do navio não o conseguiriam ver, para além de haver o grande casco da embarcação a separá-lo dos remadores. Com certeza não tardariam a adivinhar para onde ele teria nadado. Sentia-se mal-disposto. Que quantidade de água teria engolido? Doíam-lhe os braços e as esfoladelas nas costas. Levou as mãos aos pés e tirou os sapatos. Largou-os, deixando-os ali a boiarem. A pinaça diante dele conseguiria mergulhar por baixo dela para passar para o lado de lá? O instinto de sobrevivência fustigou o seu corpo.
Cinco vezes, inalou vigorosas golfadas de ar, mergulhando de seguida. Voltou a ficar cercado pela água azul-escura. Via gaivotas a flutuarem à superfície, como se o céu fosse feito de vidro. Não poderia aproximar-se demasiado delas, pois, se se espantassem e voassem, revelariam a sua presença. Logo após algumas braçadas teve a sensação de que a vida estava prestes a extinguir-se dos seus membros. Precisava de respirar, e imediatamente! Para fortalecer a firmeza da sua convicção imaginou aquilo que o esperaria, se surgisse à tona de água: tiros, golpes de baioneta, os estertores e a morte. Continuou a mergulhar». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT