Cortesia
de wikipedia e jdact
«Vi
a casa pela primeira vez no Verão em que fiz cinco anos. A culpa foi de um
poeta e do facto de a nossa visita de fim de semana, a casa de uma idosa tia favorita
em Exeter, ter posto o meu pai num estado de espírito vagamente poético.
Deparando-se com uma inesperada bifurcação na estrada, na viagem de regresso a
casa em Oxford, ele escolheu deliberadamente a estrada da esquerda em lugar da
da direita. O caminho menos trilhado, disse-nos, num tom de voz benigno e lânguido.
E, tal como o poeta prometera, fez de facto toda a diferença. Para começar,
perdemo-nos. De tal maneira que a minha mãe teve de guardar o mapa. As nuvens que
entretanto encobriram o sol não pareciam ser mais do que uma extensão da
disposição cada vez mais sombria do meu pai, que já esquecera a poesia,
lugubremente vergado sobre o volante. À hora de almoço, já estava a chover
torrencialmente e a minha mãe dera-nos rebuçados, a mim e ao meu irmão Tommy,
numa tentativa vã de nos impedir de irritar ainda mais o meu pai, cujo mau
feitio lendário estava a atingir o ponto de ruptura. Os rebuçados eram de
hortelã-pimenta, com riscas cor-de-rosa e brancas, como grandes berlindes, e tão
eficazes a dificultar a fala que tínhamos de tirá-los completamente da boca
para falarmos um com o outro. Quando chegámos ao primeiro aglomerado de lojas e
casas de aldeia, já as minhas mãos estavam pegajosas de açúcar e o peito do meu
novo vestido de folhos estava manchado e encorrilhado. Nunca tive inteiramente
a certeza do que levou o meu pai a parar o carro onde parou. Tenho ideia de um
gato a atravessar a estrada à nossa frente, mas isso pode ter sido simplesmente
fruto da imaginação de uma criança criativa e exausta. Fosse qual fosse a razão,
o carro parou, o motor foi-se abaixo e na confusão que se seguiu tive o meu
primeiro vislumbre esbatido da casa.
Era uma velha e banal casa rural,
grande, quadrada e sólida, bastante recuada em relação à estrada, com algumas árvores
mal cuidadas em redor para criar privacidade. O telhado de ardósia escura e reluzente
era extremamente inclinado, juntando-se às paredes de pedra cinzenta batidas
pelo tempo, a desolada monotonia das cores quebrada por duas chaminés iguais de
tijolo vermelho e uma abundância de janelas largas de múltiplas vidraças com
caixilhos recentemente pintados de branco. Estava a pressionar o nariz contra o
vidro frio da janela do carro, esforçando-me por ter uma vista melhor, quando
ao fim de umas quantas imprecações particularmente virulentas, o meu pai
conseguiu pôr o motor de novo a trabalhar. A minha mãe, claramente aliviada,
virou-se para trás para ver se estávamos bem. Não, Julia, implorou. Vais deixar
as janelas todas sujas. Esta casa é minha, disse eu, em jeito de explicação. O
meu irmão Tommy apontou para uma casa muito maior e mais imponente que surgiu à
vista. Pois, mas a minha casa
é aquela, contrapôs, triunfante. Para deleite dos meus pais, continuámos este jogo
até chegarmos a casa, em Oxford, e a solitária casa cinzenta caiu no
esquecimento. Não voltaria a vê-la durante dezassete anos.
Esse Verão, o verão em que fiz
vinte e dois anos, está-me indelevelmente gravado na memória. Tinha acabado de
concluir os meus estudos na escola de arte e conseguira o que parecia ser o emprego
perfeito numa pequena agência de publicidade em Londres. O meu irmão Tom, três
anos mais velho do que eu, chegara recentemente de Oxford com um distinto
percurso académico e chocou imediatamente a família anunciando a sua intenção
de seguir o sacerdócio na Igreja Anglicana. A nossa família não era
especialmente religiosa, mas o Tom insistia em dizer a gracejar que, com o seu nome,
não tinha muitas alternativas. Thomas Beckett! Por amor de Deus! Tinha ele
brincado com a minha mãe. Que esperavas?
Para celebrar aquilo que considerávamos
a chegada à idade adulta, eu e o Tom decidimos tirar umas curtas férias na
costa sul do Devon, onde podíamos esquecer temporariamente os nossos pais e as
responsabilidades e aproveitar o tempo anormalmente quente e soalheiro com que
a Inglaterra meridional estava a ser abençoada. Não ficámos desiludidos. Passámos
uma semana esplêndida refastelados na praia em Torquay e voltámos relaxados,
rejuvenescidos e bronzeados. O Tom, apanhado numa vaga crescente de optimismo,
nomeou-me co-piloto para a viagem de regresso. Devia ter sido mais sensato.
Embora eu não seja exactamente um desastre com mapas, deixo-me distrair
facilmente pela paisagem. Inevitavelmente, acabámos por nos desviar da estrada principal,
atravessando desorientados o que parecia uma procissão interminável de pequenas
aldeias idênticas, ligadas por uma estrada estreita, sob uma abóbada tão densa
de ramagem que parecia um túnel.
Depois da sétima aldeia, o Tom
deitou-me um olhar de soslaio acusador. Tínhamos ambos herdado a tez e as feições
finamente cinzeladas da minha mãe, características da Cornualha, mas enquanto,
no meu caso, a combinação de cabelo e olhos escuros me dava um ar mais travesso
do que exótico, no caso do Tom podia parecer verdadeiramente ameaçadora quando
ele queria. Onde é que achas que estamos?, perguntou ele, com perigosos bons
modos. Conscienciosamente, consultei o mapa. Wiltshire, imagino, disse-lhe vivamente.
Algures a meio. Bem, não podias ser mais específica. Ouve, sugeri, quando nos
aproximávamos da oitava aldeia, porque é que não te deixas de casmurrices e
pedes indicações no próximo pub?
Francamente, Tom, és pior do que o pai… A palavra acabou num súbito guincho.
Desta
vez, não foi fruto da minha imaginação. Um grande gato amarelo atravessou a
correr a estrada mesmo à frente do carro. Os travões chiaram em sinal de
protesto quando o Tom carregou a fundo e, depois, nem de propósito, o motor
foi-se abaixo. Raios partam! Um cura não usa essa linguagem, lembrei ao meu irmão,
e ele sorriu involuntariamente. Estou a gastar os últimos cartuchos, foi a sua
desculpa. Rindo-me, olhei pela janela e fiquei petrificada. Não posso
acreditar. Eu sei, concordou o meu irmão. É preciso ter muito azar. Abanei a
cabeça. Não, Tom, olha… É a minha casa. O quê?» In Susanna Kearsley, Mariana, 1994,
Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-168-4.
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