jdact
O
Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) E nunca mais olhara para os vitrais
de uma catedral com os mesmos olhos. O ininterrupto vociferar que provinha do
exterior distraiu-o dos seus pensamentos. Já era tempo de se ir embora, as
tarefas da jornada reclamavam a sua presença. Vestiu o hábito vermelho e o
chapéu de magíster de medicina, colocou debaixo do braço uns dois volumes de
que iria precisar para a lição e dirigiu-se para a porta. Depois de uma breve
hesitação, decidiu deixar o suevo ali mesmo. Segundo as suas previsões, deveria
ficar em estado de inconsciência até à tarde e, portanto, não iria levantar
problemas. A tentação de o pôr fora de casa era fortíssima, mas o temor de que
aquelas tatuagens necromantes pudessem congregar alguma atenção persuadiu-o a
agir com cautela. Assim que chegou à rua, sentiu-se imergir no cintilar da
terça-feira gorda. Uma imensidão de jovens corria pelas ruas entre gritos e
gargalhadas, à procura de vítimas das suas brincadeiras. Aborrecido com tanto
frenesim, seguiu colado às paredes para não ser envolvido em todo aquele
alarido. Estava com pressa, e a ideia de atravessar meia cidade para dar a
lição exacerbava o seu mau humor.
Na sequência dos recentes
dissabores entre o bispo de Paris e a Universitas Magistrorum, a maior
parte dos docentes afastara-se da Cité, elegendo a Abadia de Sainte-Geneviève
como sede provisória do Studium. Os únicos mestres que ainda ensinavam em
Notre-Dame eram os religiosos. Caminhando de cabeça baixa sob um sol
invulgarmente tépido, Suger esforçou-se por temperar o seu mau humor pensando em
qualquer coisa agradável. Malgrado seu, a única coisa que lhe veio à cabeça foi
a pedra de draconite. Como poderia ignorá-la? Como outros médicos e cirurgiões,
conhecia bem as propriedades terapêuticas das pedras. Tinha lido várias obras
sobre elas, entre as quais o lapidário de Michele Psello e o de Marbodo de
Rennes. Tempos atrás, um beneditino de Orford até lhe mostrara a sua colecção de
pedras curativas, provenientes, na sua maioria, do interior de animais: a chelidonia,
retirada da cabeça das andorinhas e capaz de curar as inflamações dos olhos; a liguriena,
extraída da vesícula urinária do lince, um remédio óptimo para as dores de estômago
e para a icterícia; a heyena, proveniente dos bolbos oculares da iena, benéfica,
se colocada debaixo da língua; por fim, a margarita, escondida nas
conchas, e o panthero, obtido das vísceras dos grandes felinos.
Mas nenhuma se assemelhava à
draconite. Se Suger conseguisse obtê-la e se escrevesse um tratado médico sobre
as suas virtudes curativas, ganharia, sem sombra de dúvida, uma posição de
prestígio junto da escola do Capítulo. Apressou-se a afastar aquelas fantasias,
esquivou-se, mal-humorado, a um grupo de peregrinos e meteu pelo bairro latino.
Ali, as festas do Carnaval assumiam proporções surreais. Por todo o lado
apareciam jovens vestidos de mulheres, de ursos e de selvagens. Uns dançavam,
outros corriam, montados em mulas ou em carros grotescos e desgovernados,
lançando verduras podres a quem passava. Era de esperar. A maior parte dos
alunos que chegavam a Paris para frequentar o Studium alinhava naquelas borgas.
O facto de se encontrarem sob a asa tutelar do Capítulo, consequentemente
imunes a sanções civis, tornava-os ainda mais audazes quanto à transgressão das
regras.
O médico passou por toda aquela
confusão sem ser molestado, as vestes de magíster protegiam-no de ser alvo
daquelas brincadeiras. Assim, foi recebendo diversas vénias e cumprimentos
respeitosos, até encontrar um grupo de rapazes reunidos em torno de um jovem alto
e com bom aspecto. Era Bernard, o seu melhor aluno. Adivinhando qualquer
sarilho, estugou o passo na sua direcção. O estudante esboçou uma saudação
impaciente, enquanto os companheiros desapareciam, apressados. Assim que se
aproximou dele, Suger reparou que tinha um olho negro e um lábio ferido. Meu
rapaz, posso saber o que te aconteceu? O jovem coçou a cabeça e revolveu o
cabelo, muito preto e forte. Bernard era um dos poucos estudantes que não
usavam tonsura. Ao contrário dos seus coetâneos, que a encaravam e usavam como
sinal de protecção do Capítulo, ele achava-a uma humilhação. Nada de grave,
magíster. Nada de grave, dizes?, rebateu o médico. A Quaresma está aí e com ela
a determinatio. Estás lembrado? É o exame que terás de fazer para te
tornares bacharel. Com essa cara, farás uma bela figura! E o mesmo me
acontecerá, como teu professor». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins
do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
Cortesia do
CdoAutor/JDACT