terça-feira, 20 de março de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Mesmo quando el-rei mandou enforcar os frades que dirigiram a matança? Isso nem se pergunta, Raquel, atalhou Diogo Pacheco»

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«(…) Estava pois aberto o caminho à sedição, orientado em parte, se não totalmente, por dois frades franciscanos que, empunhando toscos crucifixos de madeira, foram para as ruas aos gritos de heresia!, heresia!, instigando os crentes a matar os malvados judeus. Num ápice, centenas de cristãos, a que entretanto se juntaram escravos, moinantes, indigentes e muitos marinheiros estrangeiros de passagem por Lisboa, acorreram enlouquecidos ao bairro da judiaria onde era mais fácil a captura dos inimigos de Jesus, responsáveis para sempre pelo crime da crucifixão. Muitos foram apanhados na rua e logo conduzidos para as fogueiras já ateadas no Rossio e na Ribeira; outros foram mortos à punhalada, ou desmembrados a golpes de machado, ou lançados das janelas das suas próprias casas. À ordem dos padres, cada vez em maior número nas ruas da cidade, respondiam os criminosos, desembestados, contra as mulheres, violando-as primeiro, cortando-lhes os dedos e os pulsos depois, para se apoderarem dos anéis e das pulseiras. E até as crianças de colo não escaparam à fúria da horda insana. Casos houve em que os assassinos seguravam as criaturas pelos pés para as arremessar contra as paredes, esmagando-lhes os crânios. Nessa onda de demência colectiva, alguns padres esfaquearam as mulheres que se tinham refugiado nas igrejas e capelas, enquanto outros, não menos celerados que os seus pares, chegaram ao ponto de arrancar aos altares as imagens de santos e diversos relicários de madeira para servirem de combustível às fogueiras. Ora, foi na crista deste tumulto, que se arrastou por três dias e três noites, que Diogo Pacheco e Raquel Aboab se conheceram. Ele tinha trinta e dois anos; ela acabara de completar treze. Ele vivia perto da ribeira, numa casa rica; ela morava com os pais, no bairro da judiaria, numa casa pobre. E foi precisamente numa rua adjacente a este bairro que, ao fim da tarde do segundo dia de perseguições, Diogo Pacheco, já então convertido à decência humana e à tolerância religiosa, encontrou a pequena Raquel a fugir e a chorar de medo: tinha acabado de ver um grupo de cinco abades a lançar os pais à fogueira. Nessa altura o jurisconsulto tomou-a pela mão, escondeu-a sob o capeirote e conduziu-a à pressa a casa de um amigo, professor de Leis, que residia perto do local. Fora salva uma criança.
Em que pensas?, perguntou Diogo Pacheco a Raquel Aboab, depois do longo período de silêncio em que ambos haviam mergulhado. Raquel suspirou fundo, voltou a ajeitar a cabeça sobre o seu peito e disse que estava a discorrer sobre os conturbados dias daquele Abril de trágica lembrança, dias esses que, no seu entendimento, nunca deviam ter existido no calendário dos homens, quanto mais no calendário do povo cristão. Mas depois também ela, cheia de curiosidade, quis saber a que reflexões se entregara o fidalgo. Estranhamente, às mesmas que tu, adorada Raquel, confessou. E após uma breve pausa prosseguiu: não sei se algum dia vieste a saber que Sua Alteza Real mandou enforcar os dois frades que dirigiram a revolta iniciada na igreja de S. Domingos, e mais uns tantos, cerca de trinta, que fizeram parte da matança... Uma matança de milhares, não foi?..., interrompeu ela. Sim, dois mil, confirmou ele. Que loucura, senhor! Que loucura! Deus saberá castigar os que participaram no desvairado morticínio, garantiu o nobre. Raquel ergueu a cabeça, fixou os olhos d fidalgo Diogo, e, com serena coragem e cruel frieza, lembrou que antes desses dias infames já se haviam registado em Lisboa muitos actos de perseguição aos judeus, quase todos a mando de Sua Alteza Real Manuel I, ou por ele consentidos. E se Deus estava atento ao trabalho criminoso de uns, também não deixaria, certamente, de estar à ordem perversa de outro.
Talvez um dia te conte por que motivo Sua Alteza, de quem sou amigo e fiel vassalo, permitiu ao povo e ao clero alguns excessos nos primeiros anos do seu divino reinado, prometeu o homem, tentando dominar a custo o desconforto pelo discurso impiedoso da jovem judia. E, calmo, concluiu: Sua Alteza Real era, e continua a ser, muito tolerante com o povo hebreu mas, por mais benigno que fosse o seu coração, e é, não se podia esquecer de que em primeiro lugar estavam os interesses de Portugal. Nisso, como em tudo, estive constantemente a seu lado. Mesmo quando el-rei mandou enforcar os frades que dirigiram a matança? Isso nem se pergunta, Raquel, atalhou Diogo Pacheco. Não só concordei com Sua Alteza como lhe propus que fizesse o mesmo a um grupo de magistrados municipais que, na semana anterior ao tumulto da Pascoela, prendeu e matou uma família judia quando esta celebrava o Seder na própria casa em que vivia. E sabes o que lhes aconteceu? Pagaram o crime com a vida». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                         
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