segunda-feira, 5 de março de 2018

Histórias Secretas de reis portugueses. Alexandre Borges e Hugo Rosa. «Numa certamente hábil manobra, Afonso ainda conseguiu escapar-se ao cerco, mas, quando saía a cavalo da cidade, embateu com uma perna…»

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O castigo maternal
«(…) Quando terá o cardeal chegado ninguém sabe ao certo, mas poucos terão conseguido reconhecer os traços do seu rosto. A sua estada terá sido muito breve, entrando em Coimbra num dia e saindo nessa mesma noite. Posto o encontro com o rei e a renovada recusa em libertar dona Teresa, quando todos dormiam, percorreu o cardeal as ruas, excomungando toda a terra e seus habitantes, pondo-se, de seguida, em fuga, a galope no mesmo cavalo em que chegara, protegido por quatro cavaleiros e levando ouros, pratas e animais. Cedo na alvorada, o rei foi informado do temível mistério lançado sobre o País e, dispensando qualquer auxílio da corte ou das suas tropas, lançou-se ele próprio na perseguição a esse infame cardeal. Poucas horas depois, conta-se, tê-lo-á alcançado e obrigado a parar, cerca do lugar da Vimieira, perto de Poiares. Com uma mão agarrou-lhe o colarinho e com a outra desembainhou a espada, ameaçando cortar a cabeça do clérigo. Os cavaleiros preveniram-no, então, de que, se o matasse, ninguém em Roma já duvidaria de que era mesmo herege. Mas Afonso Henriques só aceitou poupar-lhe a vida na condição de que aquele descomungasse tudo quanto havia antes excomungado e que deixasse ali todo o ouro, prata e animais que levava. O cardeal tudo aceitou de pronto, por entre os tremores do frio e do medo. E, por fim, o rei pousou a sua pesada espada e despiu-se por completo, mostrando todas as feridas e cicatrizes que lhe marcavam o corpo grande. E disse: cardeal, como eu sou herege, bem se mostra pelos sinais das minhas feridas: estas em tal peleja, e estas em tal cidade ou vila que tomei, e todas por serviço de Deus, contra os inimigos da nossa fé. E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e prata, porque estou com muita falta deles, e me são necessários para mim e para os meus.
E o cardeal seguiu o seu caminho para Roma, logo depois de el-rei lhe ter voltado as costas e partido de regresso a Coimbra. Muitos anos mais tarde, senhor de um reino muito mais extenso e poderoso, já casado e pai de vários filhos, chegaria um dia trágico para Afonso Henriques. Não contava o rei com o poder e a estratégia de Fernando II, rei de Leão, nem que existisse um pacto com o governador da cidade, cercando-o em Badajoz, entre o castelo e a sua orla, os mouros e os leoneses. Numa certamente hábil manobra, Afonso ainda conseguiu escapar-se ao cerco, mas, quando saía a cavalo da cidade, embateu com uma perna no pesado cabo do ferrolho de uma das portas, mal colhido ao abrir, e caiu violentamente ao chão, ficando ferido com gravidade. A sua perna, partida no momento do choque, foi desfeita depois, quando o cavalo, de igual modo ferido, não mais resistiu e tombou por terra, pelo lado em que ambos sangravam. El-rei não conseguia sequer erguer-se e nem com ajuda dos seus foi possível transportá-lo. O herói de São Mamede e Ourique e Santiago e Lisboa, seria feito prisioneiro de Fernando, o seu genro. Dois meses passados e postos alguns acordos, o rei seria libertado, mas o povo nunca esqueceria a maldição rogada por dona Teresa. Afonso, filho, prendeste-me e deserdaste-me: a Deus peço que preso sejais vós, e porque pusestes minhas pernas em ferros (...), com ferros sejam as vossas quebradas.
De modo algum cessaria a actividade de Afonso Henriques com este acidente, mas a verdade é que a sua mobilidade física ficaria, para sempre, muitíssimo afectada e, aos 60 anos, abandonava o campo de batalha, não mais se voltando a envolver em confrontos militares, e ponderava, talvez pela primeira vez, no problema de encontrar quem lhe sucedesse e coroasse, no baptismo do Mediterrâneo, Portugal. Afonso I pereceu aos 76 anos, a 6 de Dezembro de 1185, em Coimbra, depois de um penoso calvário de invalidez, tranquilo e, como em todos os outros dias do mundo, sem qualquer receio do futuro. Jaz o seu corpo de gigante no mesmo túmulo que o de sua esposa, a rainha dona Mafalda. Entre o dia de sua nascença e o de sua morte, estendeu-se o reino do Mondego até às primeiras milhas dos Algarves. Liderou Portugal ao longo de 57 anos, 45 dos quais com o título de rei, naquele que foi o mais longo reinado da nossa História». In Alexandre Borges e Hugo Rosa, Histórias Secretas de reis portugueses, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-555-663-2.

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