O complexo religioso
«(…) Este baptistério tem algumas semelhanças técnicas e
formais com exemplares da França mediterrânica, do Norte da Itália e de Cartago
na Tunísia, todos datados entre os séculos IV e VII d.C.. Contudo, é no baptistério
de Ljubljana (Emona, Eslovénia) que são mais notórias as semelhanças
construtivas, tendo os autores que estudaram este conjunto baptismal e o
pórtico anexo, situado a sua cronologia por volta do século V d.C.. Na costa
italiana da Ligúria um complexo baptismal, também com elementos semelhantes ao
de Mértola, é atribuível a meados do mesmo século. Associado
ao espaço baptismal existe um significativo conjunto musivo, de que fazem parte
várias representações mitológicas entre as quais, é de realçar no deambulatório
do baptistério, um Belerofonte cavalgando o Pégaso para matar a Quimera e, no
longo corredor porticado, dois leões afrontados e várias cenas de caça com um
cavaleiro empunhando um falcão. Procurando os paralelos para estas
representações, não podemos deixar de referir uma pequena capela perto de Hergla,
na Tunísia, onde foi descoberto um mosaico em que também são representados dois
leões afrontados e uma cena de caça com falcoaria, conjunto datado do século VI
d. C..
Não é de
excluir que tenha sido a mesma equipa de mosaístas, oriundos certamente do
Mediterrâneo oriental, a executar todo este trabalho. Se a falta de paralelos
bem datados inviabiliza uma cronologia segura, leituras estratigráficas e
traços estilísticos permitem atribuir esta obra à primeira metade do século VI
d.C.. Nessa época, a cidade de Myrtilis e os
seus comerciantes, estão em contacto com todos os portos do Mediterrâneo
nomeadamente com o Próximo Oriente de onde são originários vários personagens
sepultados na Basílica Paleocristã do Rossio do Carmo. A organização do espaço
litúrgico em torno deste baptistério assemelha-se à dos exemplares conhecidos,
ou seja, o sacramento da iniciação cristã começa com o despojar das vestes,
desenvolvendo-se em seguida os ritos pré-baptismais: os catecúmenos iriam em
cortejo pelo pórtico entrando no baptistério pela porta oeste, donde desceriam
pelas escadas ocidentais até ao interior da fonte baptismal, para subir, já baptizados,
pelo lado oriental e serem recebidos pelo bispo, possivelmente na zona da
abside. A procissão dos catecúmenos culminava com a Eucaristia, onde se
procedia à Primeira Comunhão.
Durante a cerimónia baptismal, o
compartimento existente a norte do baptistério poderia servir de sala de espera
ou vestiário, onde os diversos grupos, crianças, homens e mulheres, aguardavam
a sua vez para aceder ao baptistério, sentados, possivelmente, em bancos de
madeira. Tendo em conta que o baptismo é um ritual anual, este conjunto arquitectónico
do baptistério poderia ser utilizado, na restante parte do ano, como
catecúmeno, para preparar os aspirantes a cristãos em determinados períodos,
podendo até ter outras funções que não se prendessem com o sacramento baptismal.
A sul
deste conjunto situa-se uma possível basílica civil, ligada ao funcionamento do
forum romano, posteriormente integrado no complexo
religioso, a prová-lo estão os restos de mosaicos que naquele local existiram e
que apresentavam motivos idênticos aos restantes encontrados no complexo
baptismal. Este espaço foi escavado por uma equipa do CAM no mesmo local onde,
em finais do século XIX, Estácio Veiga teria procedido a uma intervenção
arqueológica e retirado um fragmento de mosaico designado por mosaico da
tartaruga. Trata-se de uma construção de planta rectangular, com uma abside
semicircular orientada a oeste. Não se sabe se esta abside teria uma outra
simétrica no lado leste, pois os dados arqueológicos para suster esta hipótese
são inexistentes. A escavação da plataforma do antigo forum,
e também a desmontagem de estruturas posteriores, sobretudo pertencentes ao
bairro islâmico, onde, por sua vez, se implantaram os enterramentos medievais e
modernos, tem proporcionado a descoberta de um interessante conjunto de
edificações onde sobressaem a sua decoração musiva e os elementos de uma
arquitectura decorativa. Aliás, o desmonte e a análise minuciosa de um bloco de
opus caementicium que pertenceu, certamente, ao
enchimento de uma abóbada que cobria a abside do baptistério, permitiu
encontrar um pequeno fragmento de cerâmica sigillata foceana
tardia, cuja cronologia vai de meados do século V a meados do século VI d.C..
Suponho, portanto, que a data de construção, ou as últimas obras realizadas
nesta importante edificação, não deve afastar-se muito deste leque cronológico.
Outro elemento proveniente das
campanhas arqueológicas de 1981, e que reforça a convicção da presença cristã
neste edifício, é o fragmento de uma cruz pátea inscrita em círculo. Esta peça
de mármore cinzento é formada por um quarto de círculo e apenas um braço que
permite, no entanto, reconstituir o conjunto: uma coroa de louros simplificada,
em moldura de entalhes helicoidais, que envolve uma cruz de braços iguais
aberta em gelosia. Um pequeno espigão serviria para a fixar numa empena ou
janela. Nessa mesma área foi recolhido o fragmento de uma possível mesa de
altar, em mármore branco de grão fino, com o comprimento máximo de 30 cm,
largura máxima 29 cm, espessura máxima 8 cm, reutilizada nas paredes da casa
islâmica implantada na zona do baptistério. A placa retangular era envolvida
por uma moldura em forma de meia cana, separada no ângulo por uma palmeta. Pelo
tipo de material, e pelo local do aparecimento, penso ser provável a sua
pertença ao mobiliário litúrgico. Um fragmento de pé de altar de mármore branco
de grão fino que está trabalhado nas suas quatro faces com o que parece ser a
base de cruzes páteas, com quatro ou cinco bases que Palol situa no século VI
em que denominou como altares paleocristãos. Sendo uma forma comum em todo o
Mediterrâneo, mesa de suportes múltiplos, possui paralelos em Mérida. Ou o
fragmento de pia de mármore branco. Trata-se de parte de uma peça de forma
semiesférica com pega lateral. O bordo é plano e apresenta uma decoração
constituída por um encordoado entre dois filetes. A superfície interior e
exterior apresenta-se polida. Pode tratar-se de uma pia ou almofariz. Peças
semelhantes foram encontradas em Mérida e em Córdoba. Estes autores consideram
este tipo de peças como tendo servido de almofariz ou moinho, contudo nada
invalida que tenha sido reutilizadas posteriormente para outros fins». In
Virgílio Lopes, O complexo religioso e os baptistérios de Mértola na
Antiguidade Tardia, Revista Medievalista, Número
23, Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.
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