terça-feira, 20 de março de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Se ela é tão formosa como me haveis dito, porque nunca a levastes ao paço?, insistiu o rei, já com um sorriso cínico a marcar-lhe o rosto. Porque é judia, Alteza...»

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«(…) Era, porém, o monarca um homem esperto mas de pouco saber. Seu pai, o infante Fernando, irmão do rei Afonso V, e a mãe, dona Beatriz, nunca chegaram a dar ao filho uma educação ajustada à condição de rei, porque, tal como o próprio, jamais imaginariam que aos vinte e seis anos de idade ele viesse a ocupar o trono de Portugal. Mas a ignorância não o deprimia. O que o debilitava era um terrível sentimento de inveja por não ter a elegância física do amigo Diogo Pacheco ou mesmo de muitos jovens fidalgos que enxameavam a corte. Ao contrário desses, Manuel I era de estatura muito abaixo da média, largo de tronco, pernas curtas, coxas grossas e os braços anormalmente compridos. De pé, aprumado, o limite das mãos chegava-lhe abaixo dos joelhos. Usava o cabelo pelos ombros e uma franja a tapar-lhe a testa. Tinha as pálpebras descoloridas, os olhos pequenos, os lábios finos. A barba era negra e espessa como cordame. Por isto e muito mais poucas eram as donzelas, e a corte tinha muitas e mui formosas, que não se enojassem com a figura simiesca de Sua Alteza Real. Mas nem por tal motivo, ou não fosse o homem rei, lhe faltavam constantes gestos de extrema simpatia ou sedução. Quer dizer: de provas afectuosas ele não carecia...
Que é feito da jovem que protegeis?, inquiriu ele, repentinamente. Apanhado de surpresa com o despropósito da pergunta, àquela hora e naquelas circunstâncias, Diogo Pacheco franziu o sobrolho e, sem olhar de frente para o soberano, respondeu que já havia partido para Roma. Com quem foi?, quis saber. Na companhia dos vedores que mandastes à Cidade Santa para ajudarem os romanos a preparar a cerimónia de recepção à vossa embaixada. Sem nunca desviar os olhos do cenário delirante à sua frente, Manuel I cofiou a barba, ajeitou a gola do gibão e voltou a manifestar estranheza pelo facto de o fidalgo, em tantos anos de relação entre ambos, nunca lhe ter falado a sério do seu apego à jovem. Porque nunca houve necessidade disso, meu senhor, justificou. Mas falastes-me de tantas outras... Nos casos em que houve necessidade para tal. Se ela é tão formosa como me haveis dito, porque nunca a levastes ao paço?, insistiu o rei, já com um sorriso cínico a marcar-lhe o rosto. Porque é judia, Alteza...
Naquele instante, quase tão oportuno quanto sagrado, um coro de vozes troou pela zona baixa da cidade e pelo Tejo. Atrás de el-rei, alguém gritou Aí vêm elas! Deus seja louvado!, vociferou o arcebispo, erguendo as mãos ao céu. Amén, disse o rei. Amén, disseram todos. E todos se persignaram. Ao longe, na linha do horizonte, onde desde sempre se escondera o Sol e todos os dias continuava a pôr-se, já se vislumbravam as naus trazidas pelo fraco vento, os mastros embaciados pela neblina da manhã cinzenta e fria. Ao longo da margem, no percurso até Belém, a multidão histérica soltava gritos de impaciência, hurras ao rei, à rainha, ao papa e a Deus. Visivelmente contagiado por aquela onda de arrebatamento popular jamais sentida, Manuel I lembrou-se de que devia pronunciar um breve discurso à chegada da esquadra ao cais. No entanto, não só tinha consciência de que era fraco tribuno, como receava ser traído pela emoção no eventual caso de perder a vergonha e usar da palavra. De qualquer modo, tornava-se imperioso que alguém pregasse. Ou ele, ou alguém por ele. No seu entendimento, Diogo Pacheco estava fora de questão, dado que já tinha a incumbência de falar perante o papa. Portanto, era preciso encontrar ali mesmo um outro orador de qualidade idêntica à do seu amigo jurisconsulto ou, talvez melhor ainda, à de Cataldo Sículo, o sábio italiano chamado, anos antes, a Portugal pelo seu antecessor, João II, para proferir uma oração de luxo durante o casamento de seu filho, Afonso, com a filha dos reis católicos de Castela. Desculpando-se com dores de garganta, o monarca perguntou a Diogo, que se mantinha a seu lado, quem, na opinião dele, poderia naquelas circunstâncias, em seu nome, dar as boas-vindas ao capitão da esquadra. O fidalgo rodou a cabeça, olhou à volta como quem procura um caminho regular, e respondeu que não sendo o próprio rei a falar, podia ser João Faria ou Garcia Resende.
Mas um é magistrado e o outro secretário, atalhou o monarca, pouco convencido. Mas são ambos doutores em Leis e mestres na arte da retórica, defendeu o nobre. Além disso, prosseguiu, nenhum deles vai discorrer na cúria romana. Após alguns instantes, Manuel mandou chamar João Faria, que viera de Roma só para assistir à chegada a Lisboa dos navios regressados do Oriente. Estou aqui para obedecer ao vosso augusto mando, Alteza, disse o magistrado, ao mesmo tempo que se anunciou, inclinando a cabeça e flectindo ligeiramente o joelho direito, a cinco passos de distância do imperante. Uma vez que não estou bem da garganta, gostaria que fôsseis vós a proferir em meu nome e em nome de Portugal, umas tantas palavras de boas-vindas ao capitão da esquadra, aqui, à minha frente, quando ele desembarcar da sua nau. João Faria enrubesceu, voltou a baixar a fronte, e disse que tamanha honra não esperava de el-rei. E que outros, melhor do que ele, saberiam decerto interpretar o profundo sentimento de desordem emocional que àquela hora sagrada habitava o bondoso coração de Sua Alteza Real. Mas a minha preferência recai agora sobre vós, ilustre vassalo». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                         
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