quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Despedidas cordiais, com abraços e protestos de nos vermos brevemente. Jacob, quando me abraçou, humedeceram-se-lhe os olhos e Sara, num gesto indizível e uma expressão de suave mágoa…»

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A Letra Pitagórica
«(…) Leva-nos a visitar a fonte das termas, onde a água é tão quente que serve para curtir peles, além de que tem muitas virtudes, não só bebida, para a cura de maleitas do estômago e ventre, mas também em banhos, compreendíamos?, para os achaques das articulações. Havia também uma fonte de boníssima água fria... Frei Gaspar punha cuidado no falar, saboreava as palavras, havia sido professor de Português de inúmeras gerações de jovens... As gentes do sítio serviam-se dela para o seu consumo. Era em extremo gostosa e leve, fresca de Verão, branda de Inverno, indicada para a desobstrução dos hipocôndrios, para caquéticos e hidrópicos, para desopilar, para as diarréias. Dava-se muito bem com ela. Mas ali estava a casa de mestre Jacob, físico muito competente e sabedor, seu conhecido e amigo de longa data, que melhor que Sua Ignorância nos poderia falar da excelência das águas destes lugares, se lhe dessemos o gosto de no-lo apresentar. É uma casinha térrea, despretensiosa, muito branca e limpa. Bate à porta e não tarda que venha abrir uma mulher dos seus quarenta anos. Ah! Sois vós, frei Gaspar? Entrai, sejais bem-vindos mais a vossa companhia. Entrámos. Mestre Jacob está? Aqui me tendes, frei Gaspar!, dizia Jacob vindo de dentro. Há muito tempo que não passais por cá. Tendes estado doente? O velho frade ia a esboçar a desculpa habitual que não mas que também, Jacob continuava: mas via que trazia amigos... São dois noviços que vieram de Évora a visitar-nos, Diogo e João. Íamos a passar, depois de termos apreciado as caldas e a fonte de Santa Catarina, e falávamos da virtude daquelas águas quando me lembrei que vós, como médico..., poderia dizer-lhes mais umas patacoadas, com propriedade e autoridade, acerca dos seus benefícios. E fazia uma vénia e abraçava-nos em sinal de satisfação por nos conhecer. Sejais bem-vindos! São de facto umas águas magníficas e Milagreiras, mas deixai que neste momento vos faça as honras da minha casa e vós.
Fale da virtude do pão de centeio com queijo de cabra, feito aqui pela senhora Sara, e de uma boa pinga, de estalo, do moscatel da minha lavra, que eu, apesar de físico, nas horas vagas cultivo a minha leira. Sara já estava em acção e começava a estender na mesa uma toalha de linho muito branco, que tirara de uma gaveta. Num gesto espontâneo, eu fui ajudá-la e Diogo imitou-me. Ela achou muita graça e muito insólita delicadeza. Não nos déssemos ao incomoda, dizia sorrindo. A um canto, tendo-se afastado de nós por momentos, frei Gaspar falava baixo a Jacob e mostrava-lhe um papel que me pareceu ser a carta do superior de Évora. Jacob fitava-me curioso, pelo canto dos olhos. Sara pôs na mesa pão, queijo, vinho, mel das suas abelhas, maravilhas de que, para não desfeitearmos tanta cortesia, nos servíamos apesar do cedo da hora e, enquanto nós comíamos, a pretexto de irem à cozinha por azeitonas ou outra qualquer iguaria marido e mulher num breve instante cochicharam entre si olhando-me pela porta entreaberta. Como o vinho, o pão, o queijo, o mel eram muito saborosos, resolvi para comigo deixar para uma melhor oportunidade, para quando estivesse sozinho, a análise desses olhares e cochichos misteriosos.
Despedidas cordiais, com abraços e protestos de nos vermos brevemente. Jacob, quando me abraçou, humedeceram-se-lhe os olhos e Sara, num gesto indizível e uma expressão de suave mágoa, passou-me a mão pela face. Pareciam pais a despedirem-se de um filho que não veriam nunca mais. Diogo ou não deu conta ou, na sua discrição, fez que não viu. Durante todo o resto do dia andamos pela cidade. Frei Gaspar fazia-nos parar diante de cada monumento, de cada pedra de que conhecia a história. Agora apontava-nos o pormenor gótico do pórtico da Igreja de Nossa Senhora do Castelo, ou no seu interior nos levava à Capela do Senhor dos Passos, desta nova traça peculiar aos arquitectos de el-rei Manuel I que gostam de lavrar na pedra objectos que nos recordem as nossas navegações, cordame dos navios, algas marinhas, ondas do mar, peixes, esferas do Mundo, cruzes de Cristo, característica certamente muito de apreciar pela novidade e independência de imitação estrangeira... Duas grandes lápides aí estavam a chamar-nos o olhar. São os túmulos, embutidos na parede, de Paio Peres e dos sete cavaleiros cristãos... Pela tardinha regressámos ao nosso convento. Frei Gaspar, apesar de caminhar muito devagar, parecia ter remoçado, as flores do rosto belas e coradas, risonho e feliz por ter vivido um dia de liberdade fora da rotina conventual. E, enquanto dentro de mim eu anotava este facto e o punha a par com os meus escrúpulos de noviço cheio de dúvidas, chegava-me aos ouvidos a voz do velho frade: digo-vos, meus filhos, que há muito tempo não tinha usufruído de um dia tão maravilhoso e sentido um apetite tão sôfrego como agora sinto. A nossa irmandade já se encontrava recolhida. Silêncio de cisterna e águas paradas, tão cavo que os nossos passos ressoavam no lajedo e ecoavam pelas salas desertas. Entramos de novo na cozinha abobadada. Um ruído surdo e prolongado chegou aos nossos ouvidos. Ou se enganava muito ou íamos ter trovoada, enchiam todo o espaço da quadra as palavras de frei Gaspar dirigindo-se para a despensa. Mas a mim afigurava-se-me que não era só das nuvens que vinha o rumor». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT