terça-feira, 29 de outubro de 2019

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «Apesar de tudo foi muito delicado, porque ele alcançara um êxito extraordinário. A Glória, a deusa-cadela, como se costuma chamar, andava à volta dos pés de Michaelis…»

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«(…) O pai voltou a avisá-la: porque não arranjas um apaixonado, Connie? Aproveita o que há de bom na vida. Nesse Inverno, Michaelis veio passar alguns dias em Wragby. Era um jovem irlandês, que já tinha feito fortuna com as suas peças na América. Fora apoiado muito entusiasticamente por uns tempos pela alta sociedade de Londres, porque escrevia peças de salão. Depois, gradualmente, essa mesma sociedade foi percebendo que tinha sido ridicularizada por um rato sujo das ruas de Dublim, e a reacção súbita sobreveio. Michaelis era a última palavra em grosseria e má-criação. Descobriu-se que ele assumia uma posição antibritânica, e para a classe que tinha feito esta revelação, era pior do que o crime mais condenável. Foi completamente ignorado e o seu cadáver lançado à lata do lixo. Apesar disso, Michaelis tinha o seu apartamento em Mayfair, e a imagem de um cavalheiro descia a Bond Street, porque nem os melhores alfaiates põem de parte os clientes grosseiros quando estes pagam.
Clifford convidava um homem de trinta anos no momento menos auspicioso da sua carreira. Mas, apesar de tudo, Clifford não hesitou. Michaelis captara as atenções de talvez um milhão de pessoas, provavelmente, e, sendo um intruso sem remissão, sem dúvida ficaria grato pelo convite para Wragby no momento em que todo o mundo elegante o repudiava. Sem dúvida que a sua gratidão só poderia trazer vantagens a Clifford, do lado de lá, na América. Glória! Um homem consegue a glória, seja ele o que for, se se falar dele da maneira certa, especialmente do lado de lá. Clifford era um homem de futuro, e era notável o seu profundo instinto de publicidade. Afinal retratou-o magnificamente numa peça, e Clifford era uma espécie de herói popular. Até ao dia em que descobriu que tinha sido ridicularizado. Connie estranhava um pouco a tendência cega, imperiosa de Clifford de se tornar conhecido, conhecido nesse mundo vasto e amorfo, que ele próprio não conhecia e que receava com inquietação; ser conhecido como escritor, como escritor moderno de primeira classe. Connie sabia, pelo afortunado, velho, vigoroso e bonacheirão sir Malcolm, que os artistas faziam a sua própria publicidade e se esforçavam por exportar as suas obras. Mas o pai servia-se de vias já preparadas, que eram de todos os outros académicos que vendiam os seus quadros, enquanto Clifford descobria novas vias de publicidade, quaisquer que fossem. Convidava todos os tipos de pessoas para Wragby, sem no entanto se rebaixar. Mas, decidido a conseguir rapidamente uma reputação, servia-se de tudo o que estivesse ao seu alcance. Michaelis chegou no momento oportuno, num bom carro, com o seu motorista e um criado. Era incontestavelmente um homem de Bond Street! Mas, ao vê-lo, Clifford, que tinha qualquer coisa de fidalgo rural, retraiu-se. Ele não era de modo nenhum..., não era exactamente..., de facto, em suma, não era como pretendia parecer, atendendo à sua aparência. Para Clifford isto era decisivo e suficiente.
Apesar de tudo foi muito delicado, porque ele alcançara um êxito extraordinário. A Glória, a deusa-cadela, como se costuma chamar, andava à volta dos pés de Michaelis, quase humildes e provocadores, ao mesmo tempo rosnadora e protectora, e isso intimidava totalmente Clifford, porque ele também se queria prostituir à Glória, deusa-cadela, se ela o aceitasse. Obviamente que Michaelis não era inglês, apesar dos alfaiates, chapeleiros, barbeiros e sapateiros do melhor bairro de Londres. Não, era óbvio que ele não era inglês, tinha uma cara fora do comum, pálida e uniforme, e um rancor também fora do comum. Mostrava ressentimento e rancor, e isso era evidente para qualquer cavalheiro de genuíno sangue inglês, que nunca permitiria que tais sentimentos transparecessem. Pobre Michaelis, tinha sido tão maltratado, que ainda não perdera um certo ar de cauda entre as pernas. Tinha aberto o seu caminho por puro instinto e total ousadia até à cena, à boca da cena, com as suas peças. Tinha surpreendido o público e pensara que os maus dias tinham acabado». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
                  
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