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O
galeão S. Mateus
«(…)
Queres deixar-nos a todos órfãos de rei e de legítimo herdeiro? Já pensaste se
a fortuna nesta viagem te responder ao contrário do que cuidas?... Estátua de
teimosia e de silêncio, o rei parece não ouvir. Não respondes? Não queres
escutar a tua avó? Ah! Ingrato! Ingrato!... Doutor, doutor, não me sinto bem...
Acorre o médico, a camareira: senhora! Senhora! Desfaleceu, disse o físico. Retira-se
el-rei como sonâmbulo. Pela janela vê-se no céu o rasto lento de um cometa. Uma
cauda de fogo!, aponta um cortesão. Estende-se para o Meio-Dia, Alteza, aonde
fica a África, diz o astrólogo da corte. Sinal de bom augúrio para a vossa empresa.
Sinal de mau agouro, rosna entre dentes um conselheiro velho.
Porque
não matamos este louco que encaminha para a perdição o reino e todos nós?, segredou
ao ouvido do barão de Alvito Fernando Noronha. Com uma mentira? Será mentira?
El-rei não mente. Ia lá mentir em matéria de tanto cabedal! Sem serdes
provocado?, estranhou o arcebispo. E prosseguistes em vosso desvairo? Escute
Vossa Eminência e meça quanto desvairo... A rainha sua avó falecera a onze de
Fevereiro e ele, conquanto se recolhesse a Penalonga em retiro de dó, como era
de praxe, não deixara um só instante de cuidar dos preparativos para a campanha
de África. Elrey esta mas caido que nunca en su proposito y así no se detuvo en
Penalonga mas de tres o cuatro dias, escrevia a Filipe de Castela o embaixador
em Lisboa Juan de Silva. Que loução anda o reizinho! Vestido de cores, com
plumas... Sinal de loucura... Este moto hierve. El-rei arde!
Tão
descontente, o povo espera milagre que impeça a jornada. Senhor! Senhor!,
gritam os da cidade. Olhai o perigo que é de tua pessoa se não deixas sucessão.
El-rei pára em sua montada, deixa que a multidão o cerque: sossegai, diz. Faço-vos
saber que estou casado... Com quem, Senhor? Quem é tua mulher? Não vos posso de
momento declarar com quem. A seu tempo o sabereis. Y así paso elrey este
barranco! Vozes, vozes, vozes... Julgará Vossa Eminência que eu não tinha
conhecimento delas? Tinha, sim..., e não fiz caso. Como não fiz caso dos
conselhos do duque de Medina Celi, que esteve em Lisboa com sua mulher em Abril
de setenta e oito. Perguntei-lhe com
grande instância se o rei Filipe de Espanha suspeitava que eu queria meter-me
por terra dentro em África e perder o mar de vista. Sabeis que me respondeu?
Que isso, mais do que arriscar-me, seria de certeza perder-me. Não lhe dei ouvidos...,
e foi isso mesmo que aconteceu. Havia certamente entre os vossos pessoas
experimentadas na guerra em África, na Índia e noutras partes. Poderíeis ter escolhido
um bom general para a empresa...
João
Mascarenhas poderia ser esse general. Conselheiro de Estado, era um excelente
cavaleiro que defendeu Dio com valor. Servira muitos anos em África e na Índia...
Porque o não nomeastes? Ordenei-lhe por carta que ficasse em Portugal para, com
outros três, fazer parte do conselho de Estado que havia de governar o reino na
minha ausência. Em minha insensatez, achava que só eu, Francisco Portugal e Luís
Silva é que sabíamos de guerra..., quando nenhum de nós três havia visto em vida
inimigo armado... Não sei que vos diga. E o romeiro continuava a contar. Com
que fervor procedia aos preparativos da partida! Arrestar navios, embarcar
vitualhas, dia e noite sem alçar mão do trabalho...» In Fernando Campos, A Ponte dos
Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia
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