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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) Ninguém
atende?, pergunta-se Sarah enquanto o telefone, encostado ao ouvido, não lhe
oferece a paz de espírito de reproduzir a voz pretendida. Estranho. Interrompe
a chamada e faz outra. Aguarda uns segundos. Uma voz feminina, embora metálica,
informa que o procurado não está disponível naquele momento; no entanto, se
assim o desejar, pode deixar mensagem. Pai... É a Sarah... Leva a mão à cabeça.
Que estúpida! Se disse pai, só posso ser a Sarah. Volta a falar para o bocal.
Hum... Liguei para casa, mas ninguém atendeu..., hum..., assim que puder,
ligue-me. Preciso lhe falar urgentemente..., hum..., certo..., até já, então. Regressa
ao teclado do computador. O MSN está ligado. O ícone que corresponde à palavra
Pai aparece numa cor avermelhada seguido pelas palavras off-line. Aqui também
não está. Gostaria de saber onde anda. Pega um dos papéis amarelecidos que
tinham vindo no envelope de um tal Valdemar Firenzi, encontrado no meio de toda
a correspondência. São três, e estão todos escritos em italiano. Dois deles são
uma mera lista de nomes e apelidos digitados numa máquina de escrever, cada um
deles precedido por um número e iniciais que não compreende. Duas colunas que
enchem a totalidade da primeira folha e que recheiam metade da segunda. Alguns
apontamentos guarnecem as colunas numa caligrafia firme e bonita. Certos nomes
estão sublinhados com o mesmo traço firme que escreveu os comentários laterais,
sem tremuras nem imperfeições de caneta, e alguns desses destacados convergem
para uma seta com um dizer qualquer em italiano. Mas porque em italiano? O
impulso inicial foi atirar tudo ao lixo. O remetente não tem endereço, facto
porque a devolução está fora de cogitação. Vira o envelope para baixo. Uma
pequena chave lhe cai no colo. Muito pequena. Talvez da fechadura de alguma
mala. Da fechadura de uma porta não é, com certeza. Mas, entrementes, algo lhe
chamou a atenção. A princípio, passa despercebido no meio de tantos nomes
acabados em ov e enkos e nos outros de procedência italiana, anglo-saxónica,
hispânica; mas a verdade é que está ali, evidente, sem deixar margem para dúvidas,
sem sublinhado nem nenhum apontamento lateral, mas um círculo a contorná-lo,
tinta recente, como para chamar a atenção, como a dizer: olhe para cá.
Raul Brandão Monteiro. Escrito pela mesma máquina que digitou os outros,
oficial do exército português, pai desta Sarah Monteiro, intrigada por ver
aquele nome naquela lista: cento e doze ao todo, dizemos nós, porque ela não os
contou. O que faz aqui o nome do meu pai?
Analisa a
folha subsequente. Uns rabiscos, aparentemente escritos à pressa; assim o
indica a letra estouvada, reconhecida rapidamente por Sarah, que também a usa
nas conferências de imprensa. A jornalista identificando um colega de
profissão? Talvez sim, talvez não. A verdade é que o nome Valdemar Firenzi não
lhe é totalmente estranho, porém não recorda se é jornalista ou fonte. Ademais,
nunca se comunicou na língua italiana, que não domina, e cuja ascendência o
nome sugere. Não. Isso é outra coisa qualquer. A primeira coisa a fazer é
aguardar o telefonema do pai, e a segunda é encontrar alguém que saiba ler e
falar italiano.
18, 15 -
34, H, 2, 23, V, 11
Dio
bisogno e IO fare lo. Suo augurio Y mio comando
GCT (15) -
9,30 - 31, 15, 16, 2, 21, 6 - 14, 11, 16, 16, 2, 20
Preciso
encontrar alguém que entenda italiano. Que droga! Assusta-se com o som do
telefone e dá um salto na cadeira. Até que enfim!, desabafa, aliviada. Só pode
ser o pai respondendo ao telefonema. Pai? Silêncio do outro lado da linha. Mas
não um daqueles silêncios sepulcrais. O som ambiente que lhe chega, denuncia o
ruído da rua, da cidade, carros passando, passos, vozes desconexas, conversas
paralelas. Um telefone público ou um celular. Pai? Nada. Talvez um engano,
alguém que digitou erradamente os números, um telefone móvel dentro de uma bolsa
a quem os encontrões do quotidiano fizeram carregar aleatoriamente aquele
número de telefone. Algum admirador? Nenhum ex em matéria de amor, e falamos de
namorados, tem antecedentes de perseguição maníaca. Não. O único capaz disso
talvez seja Greg, companheiro da redacção, mas com intenção de zoar. Contudo,
entre a correspondência que recebera encontrava-se um postal dele enviado do
Congo. Nele explanava muito bem como fora, por si só, uma aventura o envio
daquele postal com uma foto do rio Lulua. Embrenhara-se na selva profunda, de
máquina fotográfica em punho. Conseguira encontrar numa aldeia um veículo automóvel
com traseira aberta que fazia a ligação semanal a Kananga, antiga Luluabourg.
Fora a única forma de manter contacto com a amiga da civilização.
Greg? É
você? Isso é alguma brincadeira?, não resistiu a sondar, pelo sim, pelo não. Mas
o ruído metropolitano que irradia do telefone não confere com o tom congolês do
postal, com a pacatez que, a seu ver, compactua mais apropriadamente com a
inóspita localidade africana. Nada disso. A mente fervilha cogitando coisas;
tudo por causa de um envelope proveniente da Itália, com remetente desconhecido
de algum italiano, e de uma lista que se pressupõe antiga e onde figura o nome
do pai no meio de tantos outros». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência,
2006, ISBN 978-972-883-969-7.
Cortesia
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