Cortesia
de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) Rafael virou-lhe as costas e
suspirou. Jacopo não o viu cerrar os olhos. Se pudesse chorava, mas já não
sabia como. A vida, por vezes, seca os olhos a alguns, fazendo com que chorem
sangue por dentro em vez de água por fora. Jacopo não era o tipo de homem que
pudesse ser apelidado e sensível às emoções humanas. Sessenta e um anos de vida
haviam colocado uma capa de racionalidade, escudando-o das emoções humanas. Ou
assim gostava de pensar. Rafael não podia fazê-lo, era padre, ainda assim o
cabr… mais frio que conhecia. Tens mais informações?, perguntou Rafael,
novamente virado para ele, encarando-o com olhos sérios e maus. Alguém lhe
ligou a meio da noite para falar de um pergaminho. Isto foi o que disse a
Irene. Apanhou um voo de manhã e... Deixou supor o resto. Onde?, quis saber o
padre. Paris. Num antigo armazém-frigorífico, em Saint-Ouen. Rafael continuou a
olhá-lo friamente e depois deixou-o dirigindo-se para a saída. Paris será.
Shimon David era um vizinho
zeloso ou pelo menos assim gostava de pensar. Os vizinhos não usavam a mesma
expressão, trocavam-na por outra, menos elogiosa, mas que ele desconhecia e,
por isso, não o afectava. Para eles Shimon era um velho curioso, sempre atento
aos menores movimentos da rua e da vizinhança. Se alguém quisesse saber se
determinada pessoa estava em casa ou se iria demorar a chegar, Shimon era o
vizinho certo a quem perguntar. Até pelo que trajavam conseguia descortinar que
destino levavam. O limite da sua sabedoria ia de uma ponta à outra da rua e
nada mais lhe importava. Viúvo, aposentara-se havia mais de duas décadas. Toda
a sua vida fora carteiro. Podia dizer-se muito de uma pessoa pela correspondência
que recebia. Shimon sabia muita coisa dos seus vizinhos, mais do que alguma vez
eles podiam suspeitar porque ninguém queria saber do carteiro. A rua situava-se
nos arredores da Cidade Santa. Ao longe, no meio de uma amálgama de edifícios e
telhados, conseguia vislumbrar-se, quem soubesse o que queria ver, o reflexo
dourado da cúpula da Rocha, bem lá no interior da muralha.
Da janela de onde controlava os
vizinhos, no bom sentido da palavra, Shimon conseguia ver a sua amada cidade de
Jerusalém, o centro do mundo. Neste entardecer Shimon não apareceu à janela. Os
vizinhos chegavam cansados do trabalho e nem deram por nada. Entraram nas suas
residências como sempre o faziam sem olhar para trás, desejosos por algumas
horas de paz e sossego, em alguns casos, ou guerra e confusão, noutros. Tanto
se lhes fazia se Shimon estava à janela ou não. Movimentos na casa da defunta
Marian, uma velhota de 90 anos que morrera havia dois meses e não tinha
herdeiros, chamara a atenção do zeloso judeu. Talvez alguém tivesse comprado a
casa que ficava ao lado da sua. O certo é que não houve mudanças nem reparações.
Os três homens que chegaram numa carrinha branca entraram na casa e
instalaram-se como se vivessem ali desde sempre. A situação não inspirava
confiança a Shimon, daí que, como zelador, auto-incumbido, da rua, tinha de
saber mais. A informação era tudo. Conhecia muito bem a casa de Marian. Entrara
nela muitas vezes quando ela era viva, rezingona e muito mexeriqueira. Mas ele
gostava de conversar com ela.
Sempre
tinha com quem falar. O primeiro erro de Shimon foi não bater à porta da frente
e tentar uma abordagem furtiva. Contornou a casa, de rés-do-chão e primeiro
andar, pé ante pé, tentando não fazer barulho. A primeira janela era da sala e
não se atreveu a olhar. Era uma divisão demasiado comum para estar vazia e
Shimon não quis arriscar. Não porque sentisse que estava a fazer algo de mal, mas
por dever de zelar pelo património da vizinha que, ainda que não se importasse,
deveria ser entregue em perfeitas condições aos próximos donos, que até podiam
ser estes, desde que Shimon o soubesse. A segunda janela era do quarto de
Marian. Transferiu-o do primeiro andar quando percebeu que morreria mais depressa
se tivesse de subir as escadas todas as noites para dormir. Ficava extenuada
devido ao esforço. Marian era uma mulher muito pragmática. Mas não era hora de
pensar nela. A missão era saber quem eram os intrusos. Se é que o eram. Podiam
não passar de três bons rapazes, sem interesse nenhum, a acrescentar à lista de
novos vizinhos. Seria uma variação, já que os vizinhos vinham, cada vez mais, a
diminuir, por motivos profissionais ou de falecimento». In Luís Miguel Rocha, A Mentira
Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
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