sábado, 26 de outubro de 2019

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «O que os olhos não vêem, o espírito não conhece: não existe. Connie e Clifford viviam já há quase dois anos em Wragby, aquela vida vaga de absorção por Clifford…»

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«(…) Nunca perdoaria a Connie por a ter despojado da sua união psicológica com o irmão. Deveria ser ela, Emina, a produzir esses contos, esses livros, com ele. Os contos Chatterley, algo de novo no mundo, e que era deles, dos Chatterley. Não existia nada que os tivesse precedido, nem nenhuma ligação orgânica, quer de pensamento, quer de expressão. Apenas algo de novo no mundo: os livros Chatterley, inteiramente pessoais. O pai de Connie, quando fez uma visita rápida a Wragby, disse à filha, a sós: aquilo que Clifford escreve está em voga, mas é vazio. Não terá futuro!. Connie olhou para aquele cavalheiro escocês corpulento, que sempre vivera bem, e os seus olhos, os seus grandes olhos azuis espantados, tornaram-se vagos. Vazio! Que quereria ele dizer com vazio? Se os críticos elogiaram, e o nome era quase famoso, e já ganhava até dinheiro com o que escrevia..., que quereria o pai dizer com o vazio dos seus contos? Que é que lhes faltava?
Connie adoptara o lema das jovens: o momento presente era tudo. E os momentos sucediam-se sem relação necessária uns com os outros. No segundo Inverno passado em Wragby, o pai disse-lhe: espero, Connie, que não permitas que as circunstâncias te obriguem a ser uma demí-vierge. Demi-víerge!, repetiu Connie, num tom vago. Porquê? Porque não? A não ser que gostes, evidentemente, respondeu o pai com vivacidade. Depois disse o mesmo a Clifford, estando os dois a sós: receio que Connie não seja do tipo de mulher que se adapte a uma demivierge. Semivirgem, repetiu Clifford, traduzindo, para ter certeza da expressão. Pensou por uns momentos, depois ficou muito vermelho. Estava zangado e ofendido. Em que é que não se adapta a ela?, perguntou, num tom duro. Está a ficar magra..., angulosa. Não é o estilo dela. Não é do género de mulher magra como uma solha, é uma truta escocesa das grandes.
Sem as manchas, evidentemente, respondeu Clifford. Mais tarde quis falar no assunto a Connie, da história da demi-vierge, do estado de semi-virgindade das suas relações, mas não foi capaz. Era, ao mesmo tempo, demasiado íntimo com ela e não suficientemente íntimo para o fazer. Espiritualmente, os dois eram como se fossem um só, mas, corporalmente, não existiam, e nenhum deles seria capaz de falar no corpus delicti. Eram muito íntimos e muito intocáveis. Connie sabia no entanto que o pai tinha dito alguma coisa, e que essa coisa estava na mente de Clifford. Sabia que ele não se importava que ela fosse meio virgem ou meio mundana, desde que ele o ignorasse completamente e nunca fosse obrigado a saber. O que os olhos não vêem, o espírito não conhece: não existe. Connie e Clifford viviam já há quase dois anos em Wragby, aquela vida vaga de absorção por Clifford e pelo seu trabalho. Os seus interesses eram todos canalizados para a sua obra. Conversavam e discutiam na angústia da composição, e sentiam que algo se estava a passar, realmente, que preenchia todo o vazio. E a vida era isto: vazio. Todo o resto não existia. Wragby estava ali com os criados..., somente espectros inexistentes. Connie dava passeios no parque e na floresta próxima, e desfrutava a solidão e o mistério. Pisava as castanhas folhas de Outono e colhia as primaveras. Mas tudo era um sonho, ou um simulacro da realidade. As folhas de carvalho pareciam-lhe agitar-se, reflectidas num espelho, ela própria era uma figura tirada de um livro, e que colhia primaveras que eram apenas sombras ou recordações ou palavras. Não havia substância à sua volta, nada..., nada para tocar, nenhum contacto. Somente aquela vida com Clifford, aquele entrelaçar permanente de fios de histórias, das minúcias da consciência, aquelas histórias que sir Malcolm considerava vazias e efémeras. Porque é que haviam de ter conteúdo e porque é que haviam de ser duradouras? Cada dia tem o seu calvário. Cada momento, a sua aparência de realidade». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
                  
Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT