Cortesia
de wukupedia e jdact
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Ainda sem ter tomado banho depois da
viagem da manhã e do trabalho da tarde, estou feliz e salgada como as flores de abobrinha que ofereço às
pessoas, que as aceitam sem cerimónia. Sinto a mesma familiaridade à medida que
cada um sorri ou me dá um tapinha nas costas, dizendo grazie, bella,
obrigado, minha linda, como se eu tivesse lhes servido flores de abobrinha
quentes e crocantes a vida toda. Gosto disso. Por um instante, penso em sair
correndo com a cesta para um canto escuro da piazza para devorar eu mesma as flores
restantes, os olhos semicerrados num êxtase sensual em meio às sombras. Mas não
faço isso. Algumas pessoas não conseguem esperar que eu chegue até elas e se
aproximam, pegam uma flor enquanto tomam um gole de vinho ou falam com alguém
olhando para trás. As pessoas estão se reunindo à minha volta, aves de rapina
que só param de dar os seus rasantes quando sobram apenas migalhas crocantes e
ainda quentes, as quais recolho com a ponta do dedo antes de levá-lo à boca. Dirijo-me
a um pequeno grupo que está elogiando o dono da fazenda onde aquelas delícias
foram colhidas pela manhã. Ele diz que haverá mais no dia seguinte, que, se
alguém quiser pegar algumas, vai deixar um carregamento de flores na casa de Sérgio
às sete horas.
Seguem-se
três conversas separadas e simultâneas sobre a melhor maneira de preparar flores
de abobrinha. Recheá-las ou não? Recheá-las com mozzarella e anchovas salgadas,
recheá-las com uma pequena fatia de ricotta salata, recheá-las com ricota
fresca e algumas folhas de manjericão, preparar a mistura para empanar com
cerveja ou com vinho branco, acrescentar azeite ou não? E a pergunta mais
importante de todas: fritar as flores em óleo de amendoim ou em azeite extra-virgem?
Distraída por essas conversas, não ouço alguém me chamando do outro lado da
pequena piazza. Chou-Chou, diz Bice, batendo exasperadamente o pé esquerdo na
entrada do bar, com outra bandeja sobre os braços esticados. Dessa vez,
navegando por entre a multidão com mais agilidade, distribuo as flores fumegantes
em tempo recorde. Embora eu não tenha sido apresentada à maioria daquelas pessoas,
todas parecem saber que Fernando e eu acabamos de nos mudar para a casa dos Lucci,
descendo a colina. Essa informação é apenas um primeiro indício da eficiência
do sistema de comunicação interna do vilarejo, activado, sem dúvida, pelo
pequeno batalhão de san cascianesi que se reuniram mais cedo na porta de nossa
casa para nos dar as boas-vindas. Uma coisa leva a outra, mas..., como um
aperitivo de boas-vindas se transformou num grande jantar e por que estou
segurando com tanta força esta bandeja vazia?
Deixamos
Veneza para trás sob a luz pálida e violácea da aurora e seguimos os quatro albaneses
amontoados no grande caminhão azul da Gondrand que transportava todos os nossos
bens materiais. Estamos nos mudando para a Toscana. A 11 quilómetros do nosso destino,
um grupo de elegantes carabinieri usando botas altas e carregando metralhadoras
automáticas fez nosso pequeno comboio parar no entroncamento com a estrada 321.
Fomos detidos, interrogados e revistados durante quase duas horas. Dois dos
quatro albaneses, sem documentos, foram presos. Dissemos à polícia militar que
estávamos nos mudando para uma das casas de fazenda dos Lucci e que precisaríamos
da ajuda, e da força, de todos os quatro. Eles entraram na sua van e
falaram pelo rádio. Ficaram muito tempo lá dentro. Quando saíram do veículo,
conversaram mais uma vez, no acostamento. Alguns dizem que os carabinieri são
escolhidos por causa de sua beleza física, que eles representam a glória do
Estado italiano. Aqueles policiais certamente faziam jus a essas afirmações; as
suas sobrancelhas escuras e olhos claros foram uma distracção estética durante
a espera. Finalmente, um deles disse: muito bem, mas é nosso dever acompanhá-los.
Formando
agora uma carreata mais grandiosa, despertámos a desconfiança dos poucos veículos
de fazenda com que cruzamos até o grande caminhão azul e o furgão da polícia pararem
atrás do nosso velho BMW no quintal da casa. Mãos à obra. Fizemos um acordo
bastante claro com a signora Lucci de que a casa estaria limpa e vazia. Mas ela
não está nem uma coisa nem outra. À medida que os albaneses clandestinos começam
a trazer os nossos pertences para dentro, peço que os carabinieri me ajudem a
levar para fora os presentes de boas-vindas da signora, todos inegavelmente sob
a forma de lixo: armários com portas amassadas, mesas e cadeiras que, para ficarem
em pé, estão engenhosamente apoiadas umas nas outras. Há seis beliches.
Deixamos tudo no celeiro. No nosso quarto, estou tirando o pó de uma bela
gravura de uma estradinha ladeada por ciprestes com uma moldura de cobre
batido. O quadro balança na sua alça de arame e atrás dele descubro um cofre
embutido na parede. Esta casa, um estábulo que mal foi restaurado, sem
aquecimento central, sem telefone e com uma instalação elétrica que não é suficiente
nem para um eremita cego, tem um cofre. E não é um daqueles pequenos, encontrados
em quartos de hotel, mas um objecto grandioso, de aparência formal, com duas fechaduras
e um relógio. Chamo Fernando para dar uma olhada. Obviamente é novo, algo que
os Lucci instalaram durante a reforma. Acho que não devemos usá-lo, diz Fernando.
Mas para que eles precisariam de um cofre aqui? Um na vila onde moram não seria
suficiente? Acho que deve ser para uso dos inquilinos. Vamos ver se conseguimos
abri-lo». In Marlena Blasi, Mil Dias na Toscânia, 2004, Editora
Sextante, 2011, ISBN 978-857-542-650-0.
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