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O Áugure
«(…)
Confuso, eu me persignei diante do funesto panorama que o prior geral traçava. Girolamo
Savonarola era, como Roma inteira sabia, o grande problema de Torriani naquela época.
Todo o mundo falava dele. Persistente leitor do Apocalipse, esse
dominicano de verbo brilhante e grande capacidade de sedução havia acabado de
instaurar uma república teocrática em Florença, para preencher o vazio deixado
pela fuga da família Medici. De seu novo púlpito, arremetia contra os excessos
de Alexandre VI. Savonarola era um louco, ou ainda pior um temerário. Fazia
ouvidos moucos às reprimendas que recebia dos seus superiores e ignorava
deliberadamente a legislação canónica. Os Dictatus Papae,
que
desde o século XI eximiam o pontífice e a sua cúria da possibilidade de errar,
não o preocupavam, e, desafiando inclusive a sua 19ª sentença (Ninguém pode
julgar o papa), gritava no altar que era preciso detê-lo em nome de Deus. O nosso
prior geral se desesperava. Não só havia sido incapaz de deter a sede de grandeza
daquele exaltado, como também a atitude de Savonarola comprometia toda a ordem
perante Sua Santidade. O rebelde, orgulhoso como Sansão perante os Filisteus,
havia rejeitado o capelo cardinalício que lhe ofereceram para calar as suas críticas,
e havia inclusive recusado abandonar a sua tribuna no convento florentino de
San Marco, alegando que tinha uma missão divina mais importante a cumprir. Essa
e não outra era a razão pela qual o padre Torriani não queria que a lealdade
dos pregadores de São Domingos fosse questionada em Milão. Se o Áugure era um
dominicano e tinha razão ao advertir acerca dos planos pagãos do Mouro na nossa
nova casa na cidade, nossa ordem seria de novo questionada.
Tomei uma decisão, irmão,
sentenciou o prior geral, muito sério, depois de meditar um instante. Temos de
afastar qualquer sombra de dúvida sobre as obras de Santa Maria delle Grazie,
recorrendo à força do Santo Ofício (maldito), se for preciso. Pater! Não está
pensando em julgar o duque de Milão, não é?, perguntei alarmado. Somente se for
necessário. Você sabe que nada apraz mais os príncipes seculares que descobrir
as debilidades de nossa Igreja e usá-las contra nós. Por isso, somos obrigados
a nos antecipar aos seus movimentos. Outro escândalo como o de Savonarola e a nossa
casa ficaria muito mal perante os Estados Pontifícios, compreende? E como
pretende, se é que posso perguntar, chegar até ao Áugure, comprovar as suas afirmações
e reunir a informação necessária para julgá-lo sem levantar suas suspeitas? Pensei
muito nisso, meu querido padre Agustín, conjecturou enigmático. Você sabe
melhor que eu que, se enviasse um dos nossos inquisidores, intempestivamente, o
tribunal de Milão faria muitas perguntas e quebraria a discrição que o caso
requer. E, se existir um complô de tanto alcance, todas as provas seriam
ocultadas com celeridade pelos cúmplices do Mouro. E então?
Torriani abriu a porta do estúdio
e desceu a escada até ao portão de entrada, sem responder. Saiu ao pátio das
cavalariças e procurou a sua mula, dando por encerrada aquela reunião de urgência.
A tempestade continuava recrudescendo com força lá fora. Diga-me, o que
pretende fazer?, repeti. O Mouro previu que daqui a dez dias serão celebrados
os funerais oficiais pela duquesa, respondeu por fim. Chegarão a Milão
representações de todos os lugares, e então será fácil infiltrar-se
em Santa Maria para fazer as averiguações pertinentes e localizar o Áugure. Não
obstante, acrescentou, não podemos enviar um religioso qualquer. Deve ser alguém
criterioso, que entenda de leis, de heresias e de códigos secretos. A sua missão
será encontrar o Áugure, confirmar uma por uma as suas acusações e deter a
heresia. E esse deve ser um homem desta casa. De Betânia.
O mestre olhou receoso para o
caminho que estava prestes a empreender. Com sorte, levaria uma hora para
percorrê-lo, e, se a mula não o derrubasse sobre alguma placa de gelo, chegaria
a casa no calor do meio-dia. O homem que necessitamos, disse como se fosse
anunciar algo importante, é você, padre Leyre. Nenhum outro resolveria com
maior eficácia este assunto. Eu? Aquilo me deixou
perplexo. Ele havia pronunciado o meu nome com mórbido deleite, enquanto
procurava algo nos alforjes de sua montaria. Mas o senhor sabe que tenho
trabalho aqui, obrigações… Nenhuma como esta! E extraindo um grosso maço de papéis
amarrados com seu selo pessoal, entregou-o a mim, com sua última ordem: você
partirá com presteza para Milão. Hoje mesmo, se possível. E, com isto, olhou o
maço de documentos que eu já segurava nas mãos, identificarás o nosso
informante, averiguará quanta verdade há por trás desse novo perigo e tratará
de remediá-lo». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN
978-854-220-327-1.
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