sábado, 19 de outubro de 2019

A Lição do Hibisco ou a Espiritualidade do Poeta. José d’Encarnação. «Borboleta verde, aqui não há flores. Procuras nas pedras jardins interiores?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não acredito! No chão jazes agora, com as cinco pétalas murchas enroladas sobre si mesmas, como que suavemente amortalhadas, a esconder o orgulhoso filete de cinco resplandecentes anteras amarelas que ainda ontem se mostrava ufano no seu esplendor, numa sedução de mui gulosos insectos, dir-se-ia. Saudei-te ontem, quando, no meio do verde vistoso das folhagens, desabrochavas essas pétalas, também elas a ostentar um amarelo-torrado bem vistoso. Efémera foi, pois, a tua existência, flor! E, agora reparo, já em teu lugar, num caule ao lado, outro botão surgiu, numa esperança de amanhã ser ele a deliciar-nos a vista!
E dei comigo a reflectir na lição: resplandeceu, deu o que tinha a dar e, passado o seu tempo, serenamente, caiu no mármore do jardim, à espera que a recolhessem e lhe dessem o destino habitual, o regresso à terra, no desejo de a fertilizar. Assim o Poeta. Como o pintor, o fotógrafo, o músico... Na captação do momento significativo e significante do dia-a-dia, que o caminho se faz por entre a vida, escreve António Salvado.
Não, não sou poeta! Gosto, porém, de saborear as palavras bem escritas! Por dever de ofício, dado que a Associação Cultural de Cascais a que pertenço se dedicou a divulgar poetas ditos populares, leio e releio poemas e até ouso escrever prefácios e fazer apresentações. Ousadia pura, já sei! Designadamente a partir do dia em que, já muitas rimas me haviam passado pela mão, propus a um colega que, se lhe aprouvesse, diligenciasse no sentido de se publicar num jornal singela nota de leitura acerca de um livro de poemas seu. Não lhe aprouve, porque, esclareceu-me, para eu compreender a sua poesia, teria de a ler e meditar toda, todos os livros que publicara!...
Reduzi-me, pois, à minha insignificância, garanti-lhe que doravante não mais quereria fazer o papel do sapateiro que pretende ir além da sua chinela. De novo me surgiu o dilema agora, quando me foi comunicado este honroso convite! Que vou eu dizer? Nada sei de terminologias técnicas, daquelas frases plenas de teoria e de mui elaborados conceitos, eu que, mais do que nas Universidades oficiais, venho diariamente aprendendo naquilo que amiúde se exara no facebook: formado na Universidade da Vida! E, por outro lado (o que é ainda mais grave!...), que li eu do vastíssimo reportório de António Salvado? Nada, praticamente nada! Rematada é a ousadia, por conseguinte, que só enorme complacência se arriscará a perdoar!
Que me seduz nos Poetas? Essa sua enorme capacidade de captarem o instante. Leio amiúde Poesia – III, de José Gomes Ferreira. Encanta-me, por exemplo, a canção daquela borboleta verde que vi, há momentos, aturdida num passeio de Campolide:

Borboleta verde,
aqui não há flores.
procuras nas pedras
jardins interiores?

E pergunta-lhe, ainda, se procura perfumes dormidos ou flores geladas para, no fim, lhe declarar:

Borboleta verde,
chama quase morta.
Também eu, também,
aos tombos nas pedras,
não encontro a Porta.

De insignificante pormenor se faz meditação, se tiram lições, se buscam sentidos… O hibisco há pouco, a borboleta agora! Ao andar, nos encontramos connosco e com os outros. E também com o Outro, Deus, na Sua dimensão imprescindível, queira-se ou não. Encontro que António Salvado fortemente consciencializa em Na Sua Mão Direita, um livro deveras especial, impregnado de ressonâncias bíblicas: a evocação dos
apóstolos Paulo, Pedro e Judas numa procura de perdão; a água niveal de Siloé, símbolo da purificação por que se anseia; a via-sacra da vida, noite amarga em busca de um som de claridade que anime e revigore…» In José d’Encarnação, A Lição do Hibisco ou a Espiritualidade do Poeta, António Salvado, O Caminho se Faz por Entre a Vida, Colóquio, RVJ Editores, 2017, ISBN 978-989-828-984-1.

Cortesia de RVJEditores/JDACT