Colonialismo e Criação Literária em África
«Então quando eu fui para a escola, para a escola colonial, esta
harmonia quebrou-se. O idioma da minha educação deixou de ser o idioma da minha
cultura».
«Estas palavras, devidas
a um dos maiores escritores africanos, definem o drama por que passaram muitos
dos intelectuais africanos dos nossos dias. É provável que Ngugi
exagere. O texto em epígrafe pertence a um livro que Ngugi publicou em 1986, Decolonising the Mind – The
Politics of Language in African Literature, onde ele explica as razões por
que deixou de escrever em inglês, retomando à sua língua materna, o gikuyu.
Há uma grande dose de paixão a atravessar este livro. Terá a ver com todos
os problemas políticos por que o autor passou na sua terra natal, no Quénia,
levando-o à prisão e, por fim, ao exílio. Mesmo admitindo o exagero que poderá
estar implícito na frase em epígrafe, algo nos surge como incontestável: é
impossível conceber a formação do que geralmente designamos de literatura
africana (i. e., literatura africana em línguas europeias) desligada do
fenómeno do colonialismo. A sobrevivência deste dependeu da formação de
quadros que serviram de intermediários entre os colonizadores, em situação de
minoria, e as populações africanas, integradas em sociedades tradicionais, periféricas,
em situação de maioria.
A formação de quadros
implicava ensino, e ensino formal. Isto é: administravas e a uns tantos
africanos, geralmente elementos dos estratos sociais superiores das sociedades
tradicionais, um ensino que, sendo, em muitos casos, pretensamente a cópia do
modelo metropolitano, acabava sempre por perder em qualidade. Ou porque
faltavam professores devidamente qualificados ou porque havia, à partida, uma
preocupação explícita das autoridades coloniais em torná-lo profissionalizante,
a degeneração tornava-se inevitável. Alguns, muito poucos, dos absolventes do
grau secundário lograram deslocar-se à metrópole e frequentar um curso
universitário em circunstâncias iguais às dos seus colegas europeus.
Estes dois grupos de
africanos letrados, motivados pela ascensão nas sociedades colonial e
metropolitana, esforçaram-se, num primeiro momento, por identificar-se com o
invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente, constituindo
então o que geralmente se designa de élites
coloniais. Contudo, olhados com
desconfiança pelos africanos das sociedades tradicionais e sem serem aceites na
sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e
metropolitana, apercebem-se, num segundo momento, da inautenticidade cultural e
humana em que tinham caído. Esta descoberta
é o início de um processo de consciencialização que passa pela
reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de expressão
que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem literariamente nele. Dando
azo a essa faculdade, eles não só dão mostras de que intelectualmente eram capazes
de orientar o seu próprio destino, o que até aí havia sido posto em dúvida,
como também poderiam porventura com a sua retórica sensibilizar franjas intelectuais
da metrópole para a sua causa.
Esta explicação sucinta
da génese das literaturas africanas em línguas europeias aplica-se em primeira
mão ao nascimento das literaturas francófonas. Os intelectuais que estiveram
por detrás delas viram-se a braços com uma política assimilacionista que os
fazia franceses de segunda classe. E são precisamente aqueles que viviam em França
que encetaram os primeiros passos para a sua afirmação como homens negros e,
como tal, pensantes. Eram eles que se viam confrontados a par e passo com a sua
situação biológica de homens negros numa sociedade branca, com a fragilidade ou
falsidade de um discurso oficial no dia-a-dia. Fundam assim em Paris, em redor
da revista Légitime Défense e da que lhe sucede, L’Etudian
Noir, o movimento estético-literário que veio a ser conhecido por Negritude.
O romance do escritor senegalês Cheikh H. Kane, L’Aventure Ambiguë, cuja
1.ª edição data de 1961, talvez seja
de todos os textos representativos desta fase da literatura francófona aquele
que melhor exemplifica o dilema dos intelectuais africanos que, no prosseguimento
dos seus estudos, se vêm obrigados a absorver muitos dos valores ocidentais.
Samba Diallo, a personagem principal do romance, é um jovem senegalês, de
origem fula (peul), que se desloca a Paris para aí dar continuidade
aos seus estudos. O confronto com a cultura ocidental, com a cultura europeia,
despoleta nele uma profunda crise de consciência que não será de todo alheia à
sua prematura morte, já na sua terra natal. Samba
Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lançaram o grito
da Negritude, a urgência do retorno às origens como forma de se
tornarem coerentes com a sua própria origem biológica e cultural.
Além disso, o carácter
autobiográfico do romance é por de mais evidente. Como Samba Diallo, também
Cheikh Hamidou Kane nasceu no seio de uma família tradicional no interior do
Senegal, foi iniciado no estudo do Corão durante a sua infância e mais tarde
concluiu em Paris (Sorbonne) o curso de Direito e Filosofia. Depois
disso, tal como Samba Diallo, regressa ao seu país natal. A necessidade de afirmar
a sua Negritude não se faz sentir com tanta acuidade entre os
intelectuais anglófonos. A Inglaterra privilegiara, na verdade, uma política de
integração indirecta, o correlato da administração indirecta, das populações africanas
na economia mundial. Serviu-se geralmente para tal fim do seu potencial económico,
fazendo chegar até aos pontos mais recônditos a lei do capitalismo. Tal não
significa, todavia, que tenha descurado os meios que haviam sido apanágio dos
colonialismos francês e português, nomeadamente a evangelização cristã. Os efeitos
desta aparecem registados num dos primeiros e mais significativos textos da literatura
anglófona. Trata-se do romance Things Fall Apart, de Chinua
Achebe, um dos mais conhecidos e conceituados escritores de língua inglesa dos
nossos dias. Achebe foi um dos pioneiros da literatura anglófona. O seu
romance foi editado pela primeira vez em 1958.
Ele tem por tema o desabar das estruturas e dos valores tradicionais entre os Ibos,
povo que habita o sueste da Nigéria e do qual o autor é originário». In
José Carlos Venâncio, Literatura e Poder na África Lusófona, Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, Diálogo-Série Convergência, Cultura, Etnologia,
Linguística, África Lusófona, INCM, Lisboa, 1992, ISSN 0871-4444.
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