«(…) A estas criaturas semi-humanas acrescia um vasto rol de animais maravilhosos,
como dragões, centauros, unicórnios, sátiros ou sereias, que se supunha viverem
algures, em coordenadas mais ou menos imprecisas, no oceano ou em terras
situadas além dos limites directamente conhecidos pelos Europeus. A Ásia
longínqua, para lá do mundo muçulmano, suscitava especial interesse. Circulavam
pela Europa várias compilações de maravilhas
do Oriente, e uma em especial, a de John de Mandeville, conheceu grande
difusão, tendo sido copiada, traduzida e, mais tarde, impressas. Este autor
permanece um mistério. Aparentemente, trata-se de um relato de uma viagem
realizada por um nobre inglês algures em meados do século XIV, mas essa
personagem provavelmente nunca existiu e a viagem
parece não passar de uma compilação de dados de viajantes reais misturada com
histórias fabulosas.
Convém, contudo, relembrar que não era apenas o oceano desconhecido e a
Ásia longínqua que se julgavam povoados de criaturas sobrenaturais. Bruxas,
lobisomens, vampiros, anjos ou faunos preenchiam o imaginário e faziam parte do
quotidiano dos Europeus, condicionando a forma como se relacionavam entre si e
com o mundo em redor (tanto o natural como o sobrenatural). Se os
bosques, as montanhas ou os rios próximos escondiam seres temíveis ou mágicos,
como esperar que terras distantes e desconhecidas não albergassem maravilhas ainda mais estranhas? Como é natural,
as descrições de monstros, seres maravilhosos e homens bizarros, assim como de
fabulosas riquezas, que existiriam nas margens e para além do mundo conhecido,
alimentavam a imaginação e excitavam tanto o temor como a curiosidade. Não
eram, porém, um móbil suficientemente poderoso para iniciar um processo de
descobrimento do mundo, como o que os Portugueses desencadearam na primeira
metade do século XV, nem um travão inibidor capaz de impedir ou refrear a sua
progressão e sucesso.
Antes dos Descobrimentos, pensava-se na Europa que a Terra era plana?
Tive uma professora no antigo ciclo preparatório que o afirmou uma velha
sala de aula. Como não se tratava de uma docente de História ou Geografia,
assumi que as suas palavras não passavam de um simples comentário, um mero eco
de uma ideia muito comum. Uma Terra plana, quadrada e com abismos onde se
pensava que se precipitariam os navios que se chegassem demasiado perto, ou um
disco circular sob uma abóbada celeste, são ideias correntes, embora erradas,
acerca do alegado pensamento dominante na Europa sobre a forma da Terra, até ao
século XV. As viagens marítimas teriam sido, assim, um movimento de enorme
ousadia e coragem, não só por contrariarem a tradição defendida por sábios e
autoridades eclesiásticas, mas também por desafiarem um destino fatal que se
tinha por certo. Estas noções erróneas, mas que permanecem enraizadas, ainda
nos nossos dias, estão articuladas com o mito de uma Idade Média obscurantista,
dominada por uma Igreja Católica ferozmente avessa ao espírito crítico e que
defenderia, de forma dogmática, a ideia da Terra
plana. A sua divulgação ficou a dever-se, em boa parte, ao físico americano
John William Draper (1811-1882) e ao enorme sucesso e difusão da sua obra History of the Conflict between Religion
and Science, de 1874.
É também fácil de constatar, em certa literatura de divulgação, sobretudo
norte-americana, como Cristóvão Colombo era apresentado como um génio
revolucionário decidido a provar que o mundo era redondo, contra o
pensamento dominante, e obscurantista, da época. Aparentemente, foi o
escritor americano Washington Irving (1783-1859) o criador e principal
responsável pela difusão deste mito, na sua biografia do navegador (A History of the Life and Voyages of
Christopher Columbus, 1828). No nosso tempo, existir quem
defenda que a Terra é plana (como os membros da Flat Earth Society, fundada por
Samuel Shenton em 1956 e actualmente com actividade residual) não passa de uma
curiosidade bizarra, mas há séculos não o era seguramente. Contudo, esta ideia
nunca prevaleceu e as tradições geográficas que a defendiam nunca conheceram
expressão significativa». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses
Descobriram a Austrália? A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT