«(…) Saudoso do bom e venturoso pretérito e ao largo dos acontecimentos,
é provável que a memória, se não a fantasia, lhe falseie o pormenor,
engrandecendo-o. Mas, em regra, palpita no que conta, e lhe deixaram passar, a mais
proporcional das realidades. Não faltou, porém, quem o acoimasse de impostor, a
tal ponto se entrelaçam na narrativa, de insistente e imprevisto modo, o romanesco
e o maravilhoso. E as velhas de soalheiro, que são as almas de S. Tomé deste
Mundo, abanavam a cabeça e riam do Fernão Mentes Minto! Modernas
investigações históricas, textos japoneses vindos a lume, as cartas dos
religiosos que missionavam no Oriente, livros de viagem atestam a fidedignidade
essencial da Peregrinação. A Ásia era aquilo, e um europeu transplantado para
semelhante meio, de certo menos áspero em tolerâncias, mais atrasado em
progresso material do que a Europa, tinha que reagir daquele modo. Fernão e mais comparsas enxertam-se
perfeitamente na acção político-social dos portugueses no Índico. E a Peregrinação
emparelha com De Rebus Emmanuelis
Gestis, desfrutando não menos voga e não menos vezes traduzida aquela
obra que esta.
Além do mais, há um acento de sinceridade em Fernão, um ar tão natural de modéstia, que se lhe não pode negar crédito.
Quando a sua fantasia é de todo desorbitada, acreditamos ainda. Acreditaríamos que
vira nos países que rotula de nomes inverosímeis, tanto a outiva lhos estropiou
deploravelmente, que vira passar camelos por buracos de agulha, gente comer calhaus
e ladrar como os cães, se no-lo dissesse. E com verdades ou com palões, que
nunca serão dos tais marmelos crus que custam a descer no esófago, tal livro queda
na nossa língua, tão de acordo com o espírito e o feitio dos homens daquela
era, uma verdadeira epopeia, diríamos uns segundos Lusíadas.
Quanto à simbiose Fernão-Faria, cenário e
representação não podem ser mais desconcertantes. Depois do ataque a três juncos
da China, cometido a título de represália e coroado de êxito, Fernão escreve: Havendo já vinte e seis dias que eu estava aqui em Patane acabando de
aviar uma pouca de fazenda que viera da China para me tornar logo, chegou uma
fusta de Malaca, de que vinha por capitão um António Faria Sousa, o qual por
mandado de Pêro Faria vinha a fazer ali certo negócio com el-rei e assentar com
ele de novo as pazes antigas que tinha com Malaca […] Este António Faria trazia
uns dez ou doze mil cruzados em roupas da Índia.
A analogia é flagrante. Fernão estava
também a aviar fazenda que chegara da China, bem entendido, nos juncos
apresados junto à foz do Calantão com a morte de setenta e quatro homens da
equipagem. Quando se trata destas açougadas, embora vulgares perante os costumes
da época, os protagonistas costumam encobrir-se por detrás de nome suposto,
contando o feito como testemunhas eventuais ou que o ouvissem a segundos. Procedem assim por hipocrisia?
Pode muito bem ser o compreensível resguardo de quem não quer mostrar as mãos,
se bem que se tratasse de operações contra inimigos da Cristandade. Para não
termos de admitir que Fernão e Faria
sejam uma e a mesma pessoa, e
o desdobre não teria outro objecto senão fugir ao ominoso com que poderia ser
estigmatizado, há que fazer tábua rasa da farta cópia de elementos que se encontram
à base da bifurcação, comuns aos dois. Tanto um como outro se ocupavam em mercadejar.
Mercadejavam em panos. António Faria teria mandado a Lugor, no reino de Siao,
um seu feitor, Cristóvão Borralho, passar a veniaga. E Fernão encontrava-se lá na mira de impingir as sedas, monos de
armazém intragáveis, que lhe haviam competido na captura dos juncos do Calantão».
In
Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete Partidas, Viajantes, Aventureiros,
Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand, Lisboa, 1969.
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