Formação intelectual
«(…) Várias testemunhas que depuseram anos mais tarde perante o Supremo
Tribunal em Portugal acusaram Góis
de desobedecer às regras do jejum e de justificar essa transgressão com uma
citação da Bíblia: O que entra pela boca
não produz o mal. Na defesa, Góis
falou de banquetes na Flandres em que era corrente
insistirem uns com os outros para beberem mais do que o necessário, citando de
brincadeira em tais ocasiões a frase bíblica, sem que ninguém se tornasse
suspeito. Essa afirmação, além de dar uma ideia da natureza um tanto ou
quanto rude das reuniões sociais dos amigos de Góis, reflecte também queixas habituais da parte das autoridades
católicas sobre o desleixo com que se observavam as regras do jejum. Não há
razão para pensar que Gois fosse uma excepção à inclinação generalizada para
não levar muito a sério certas práticas do cristianismo.
A fim de se compreenderem os
erros religiosos de Góis, assim como a maneira como explorou ideias
protestantes, é preciso lembrar que
tinha o apoio duma considerável comunidade católica. A geração dos católicos
nascidos na viragem do século vivia num estado de grande tensão e numa
atmosfera de dúvida a que se misturavam esperanças duma renovação espiritual.
Para muitos católicos, insatisfeitos com Roma, o Lutero da fase inicial
era a resposta a preces feitas no segredo dos corações. Como Erasmo,
seu líder reconhecido, não condenavam Lutero em absoluto, nem mesmo depois
do seu rompimento com a Igreja Católica.
Foi nesse clima intelectual que Góis
investigou o panorama do protestantismo, fosse onde fosse e sempre que se
oferecia uma oportunidade e, em especial, durante a missão de 1531. Na Dinamarca o diálogo que travou
com o governante protestante, o rei Frederido, teve tamanho êxito que, por
sugestão do mesmo rei, fez uma paragem para visitar um conselheiro de
Schleswig, que era então território dinamarquês. Parece que aí recebeu uma
surpreendente lição de protestantismo. O seu anfitrião convidou-o a um
jantar espectacular, como nunca tinha visto, e que lhe ficou para sempre na
memória. Como logo a seguir Gois confessasse
a heresia e explicasse o incidente numa carta ao rei João III, ele tinha a
certeza de que os pormenores eram bem conhecidos, e portanto admitiu esses
factos, sem reservas, aos inquisidores.
O conselheiro, seu anfitrião, era um protestante fervoroso. Levantou-se de repente durante o jantar e
voltou com um cálice consagrado cheio de vinho branco. Virou-se para [Gois] com
o cálice na mão, observando que estava a beber de um vaso que muitas vezes o
tinha traído a ele e aos seus antepassados. Quando Góis protestou, o anfitrião sentiu-se incitado a fazer ainda mais
demonstrações. Colocou o vaso diante de Gois e erguendo as mãos ao céu pediu a Deus que mudasse o vinho em sangue,
mostrando desse modo um [autêntico] milagre. Finalmente, passou o vaso a Góis,
insistindo com ele para que bebesse; e como Gois se recusasse, o
conselheiro acusou-o de ser supersticioso.
Depois dessa cena singular seria de esperar que Gois hesitasse em se dar de novo com protestantes, mas tal não
sucedeu. Prosseguindo de Schleswig para Lübeck, Gois teve conversações com o
conhecido reformador Johann Bugenhagen sobre a reorganização que este planeava para
a Igreja e, possivelmente, (embora Gois não o relatasse), sobre problemas
religiosos de carácter geral. Contudo a Dinamarca, Schleswig e Luebeck não
foram senão o prelúdio do capítulo fatal das relações de Gois com os protestantes, capítulo esse que começou com uma visita
de dois dias e meio a Wittenberg em 1531.
Gois divulgou aos inquisidores muitos pormenores dos encontros que teve com os
reformadores dessa cidade, sem lhes contar
a historia toda, e é preciso ler nas entrelinhas para perceber o que se passou.
A visita de Gois a Wittenberg teve lugar um mês depois de príncipes e
de cidades protestantes se terem unido na chamada Liga de Schmalkalden; esse acto exprimia claramente a
desconfiança agressiva que sentiam pelos católicos. Góis não prestou a mínima
atenção ao estado de tensão que lá reinava, nem à ameaça que o episódio de Wittenberg
poderia constituir para a sua reputação como católico. Ê possível que tivesse
sido da opinião do seu colega, o diplomata polaco Dantiscus, que, depois de ter
estado em Wittenberg em 1523,
observou: Quem não viu nem Roma nem
Wittenberg não viu coisa alguma». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese
Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.
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