O ‘Arranque’ dos Descobrimentos. O infante Fernando foi realmente um
mártir abandonado à sua sorte?
«(…) Contudo, a ideia, muito vulgarizada, de que os Portugueses o abandonaram
à sua sorte, não abrindo mão da cidade de Ceuta por motivações estratégicas,
não é verdadeira. Há três informações que escapam, geralmente, aos juízos e análises
que se fazem a este assunto. A primeira é a fragilidade da dinastia merínida,
que então reinava em Marrocos, assolada por disputas internas e desprestigiada devido
às incursões portuguesas, o que dificultava as negociações e a diplomacia; a
segunda é o clima de grande desconfiança entre as duas partes, agravada pelo
adiamento por parte dos Portugueses a estabelecer o acordo e, evidentemente,
pela tentativa frustrada em libertar o infante cativo. Finalmente, houve, de
facto, uma decisão final para entregar Ceuta, já depois da morte do rei Duarte,
e que mereceu a concordância do regente Pedro e da rainha D. Leonor. Foi
ultimada uma embaixada para se dirigir a Ceuta, tomar o governo da cidade e proceder
daí à troca do infante Fernando. Contudo, o navio em que seguia foi atacado, ao
largo do cabo de S. Vicente, por um navio de piratas genoveses, causando a
morte do embaixador. As negociações conheceram novo interregno, mas estava em
curso um processo diplomático que poderia, eventualmente, ter obtido sucesso se
a morte do infante, em 1443, não
tivesse ocorrido em data tão prematura.
A primazia portuguesa nos Descobrimentos é hoje aceite sem reservas.
Sempre foi assim?
Quando o público português tomou contacto com a obra de divulgação Os Descobridores, de Daniel J.
Boorstinlo, nem todos terão reparado num pequeno capítulo (n.º 21,) dedicado
aos Portuguese Sea Pioneers. Aqui é
sucintamente descrito e apresentado o processo, as causas e as explicações que
levaram o infante Henrique e os seus homens a assumir a vanguarda do
descobrimento do mundo; nada que constitua surpresa para os leitores
portugueses, afinal são matérias aprendidas desde os bancos da escola e que
fazem parte do imaginário e das referências nacionais. Mas para outros públicos,
foi certamente uma novidade. As informações contidas no livro não são
especialmente interessantes, nem os Portugueses são pintados com cores
particularmente elogiosas, assumindo esta questão uma tonalidade banal,
perfeitamente assimilada e dentro dos parâmetros do conhecimento corrente e
balizado pela comunidade científica. E é verdade, felizmente. Mas para se
atingir este grau de anormalidade, numa obra com tão grande divulgação
internacional, houve um longo caminho a percorrer entre disputas académicas e pessoais,
lacunas informativas, preconceitos nacionalistas, interesses políticos e
simples oportunismo.
Até ao século XVIII, a informação que circulava na Europa concedia aos
Portugueses, sem grandes reticências, o papel pioneiro na exploração do
Atlântico e da costa africana, descrevendo o processo que culminaria com as
viagens de Colombo e Vasco da Gama. Os enciclopedistas da Luzes, que compilavam e sistematizavam informação e a faziam
divulgar pela Europa, tinham acesso às crónicas portuguesas, sobretudo as Décadas
de João de Barros, onde constavam estes dados. Por exemplo, a Histoire des Deux Indes,
atribuída a Guillaume-Thomas Raynal, conhecido vulgarmente por Abade Raynal
(1713-1796), que conheceu um extraordinário sucesso e divulgação na época,
menciona as viagens tuteladas pelo infante Henrique e a importância da figura
do rei João II.
Foi no século XIX que surgiram as primeiras obras que, apesar da falta
de suporte documental e de credibilidade argumentativa, colocavam em causa o
que até então era tomado como um dado adquirido: que os Portugueses haviam sido
os primeiros a explorar o Atlântico e a desenvolver métodos e práticas de
navegação modernas. A alteração estava ligada à forma como estas questões, que
até essa altura eram meros dados históricos, adquiriram uma crescente importância
internacional. De facto, as potências europeias começavam a interessar-se por
África; Portugal, sem poder naval e militar para impedi-las, invocava direitos históricos decorrentes do facto
de ter sido o primeiro a explorar essas paragens. A História foi, assim, mais uma
vez utilizada ao serviço dos conflitos e das disputas entre as potências
coloniais. Em 1832, o autor francês
Louis Estancelin, deputado da região do Somme, publicou uma obra na qual
defendia que os seus compatriotas (mais especificamente os Normandos da
região de Dieppe) haviam explorado as costas africanas e navegado até à
Guiné no século XIV, antes, portanto, dos portugueses. Coube ao visconde de
Santarém, diplomata em Paris, rebater estes argumentos e provar definitivamente
o contrário, alguns anos mais tarde. Não era uma disputa meramente académica: o
argumento histórico tinha utilidade no conflito que opunha interesses
portugueses e franceses na região do rio Casamansa, no actual Senegal». In
Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi
Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT