Viriato. O nosso avô
«(…) Os povos ficavam a lonjura considerável uns dos outros, duas, três
léguas e mais. Neste particular assentava o róbur da sua invulnerabilidade.
Distância tão grande a percorrer exigia os seus aprestos, e os atacantes
acabariam por dar nas vistas, ainda que efectuassem a marcha de noite, ao
transpor que mais não fosse o glacis. De contrário, uma vez em
força intra muros, não quedaria pedra sobre pedra, nem com vida
menino de leite ao colo da mãe. Esses povos tinham nomes distintos que transitaram,
mercê de uma geografia pressurosamente amplificadora, para um onomástico que
elevava seus foros à categoria de pequena nação. Em questões de censo sempre
que se tratava de populações primitivas ia-se de extremo a extremo. Para uns, a
Ibéria era povoada e fecunda como uma coelheira. E de facto, presume-se que
tanto a Bética como a Betúria fossem grandes viveiros de almas. Mas já o mesmo
se não pode dizer da Lusitânia, se tivermos em conta as ruínas dos lugares que
subsistem dessa época, e aqueles de hoje, erguidos presumivelmente sobre o assento
dos primitivos. E para notar que se mantiveram sinónimas as palavras lugar e
povoado desde então.
Como andavam armados os
lusitanos? Sem dúvida que da maneira mais heteróclita e eventual. Na alba,
pode dizer-se, da indústria do ferro, haveria quem tivesse a sua espada; o seu
machete; o seu gadanho; o seu chuço de pau com ferrão de metal; todos em regra
o seu dardo. O dardo era para eles o que a pistola é, para o cidadão
contemporâneo, a arma portátil de defesa. As forjas das serras, análogas às
actuais, compostas de um fole, uma bigorna, dois martelos, uma tenaz,
alimentadas pelo carvão pedido à torga, produziam estas armas como agora confeccionam
a sega para o arado ou a relha. Em certas localidades, como Fráguas, distrito
de Viseu, ter-se-ia fundido o ferro, a avaliar pelas escórias que juncam o
terreno. Os lusitanos usariam estas armas de fabrico local, algumas de têmpera
acerada, apenas os mais notáveis dispondo do gládio romano ou do montante
gaulês. De uns para outros, a diversidade era infinita, como de resto hoje se
verificaria nas aldeias, dado que fossem chamadas na ressaca da guerra a acudir
com suas armas de fogo.
É mais que certo que nos teares urdissem e tecessem o burel e o linho,
com os seus derivados. Testemunham os historiadores coevos que nem sempre
envergavam peles. O saio tão falado era de lã que, batida nos pisões, se
tornava quase impermeável. No fabrico da cetra tanto entrava o coiro como a
grossa estopa. Apenas mais tarde existiu moeda circulante e foi nas cidades
lusitanas do Sul. Os habitantes permutavam-se os produtos da terra e os animais
de criação contra o sal e outros géneros de primeira. necessidade. Quando
muito, o metal em barra lhes servia de artigo de barganha. Mas das incursões nas
terras ricas da Bética e Turdetânia voltavam com objectos custosos e mesmo de
arte, que faziam o seu orgulho e arrecadavam como autênticos tesouros. É fora
de dúvida que não foi nas ourivesarias dos Montes Hermínios que Astolpas, o opulento
sogro de Viriato, mandou confeccionar a baixela de ouro que serviu ao festim
nas bodas do cabecilha.
Que oferecia a Hispânia que
tentasse os romanos? Em verdade estes tinham vindo à Península, antes
de mais nada, com o fito exclusivo de atalhar à colonização púnica. Os cartagineses
haviam entrado com pés de lã, e dentro de pouco, afáveis, serviçais, agentes de
progressividade, estavam colaços de todo com os indígenas. O próprio Aníbal
casou com mulher turdetana. O grosso do exército recrutou-o nas tribos. Para
Roma era um perigo iminente a conjurar. E atiraram-se de cabeça. Uma vez
degolado o dragão, deram conta que havia muito a pegar na Ibéria. O subsolo era
rico em metais, a terra produzia muito bom gado lanígero, excelentes cavalos,
não falando no inçadoiro prodigioso de gente, material conversível em escravos,
soldados, mineiros. Toca a explorar a terra expurgada do figadal inimigo». In
Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do
Brasil, Lisboa, 1952.
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