«(…) Fui informado de
que, durante a refeição, quase só se havia falado do Tratado de Confissom.
Com a concordância de Lopes Almeida, Marcelo Caetano exprimia-se mais ou menos assim:
Sem querer desfazer do valor do rapaz,
estou convencido de que ele não tem razão. A data do colofão não é o termo na composição
e impressão do livro, mas da redacção do manuscrito. O livro acabou-se na vila
de Chaves, o que quer dizer, o manuscrito foi concluído na vila de Chaves, na
data indicada. Informado telefonicamente desta objecção, preparei novo
artigo, não só reduzindo à sua insignificância estes reparos, que não tinham fundamento,
mas trazendo novos elementos que, entretanto, eu tinha alcançado de um
confronto muito pormenorizado com incunábulos espanhóis de Zamora e Salamanca
um pouco anteriores a 1489. O meu artigo começava por indicar que, de
facto, se destinava a pessoas cultas (e M. C. era cultíssimo), mas não especialistas de bibliografia.
Este segundo artigo foi publicado em fundo do Diário de Notícias a 20 de
Junho de 1965. M. C., em carta
escrita no final desse mês, confessou-se
vencido e convencido, havendo reconhecido a importância da descoberta para a
incunabulística nacional.
Em Dezembro de 1974 (exactamente no dia 19), perante
um juiz formado por Eugénio Asensio, Robert Ricard, Paul Teyssier, Raymond
Cantel, André Saint-Lu e Marcel Bataillon, que presidia, defendi as minhas
teses de doutoramento de Estado na sala Louis Liard da Sorbonne. Uma das
teses era exactamente a edição diplomática do Tratado de Confissom
e principalmente o meu estudo sobre os problemas do Livro português no
século XV. Robert Ricard, não tendo compreendido inteiramente a ironia da minha
interpretação de alguns aspectos mais pitorescos e picantes daquele texto,
procurou com muita seriedade convencer-me da importância do sacramento da
confissão na sociedade portuguesa do século XV, sem se aperceber de que estava a
arrombar... uma porta aberta. Mas fê-lo com uma impecável delicadeza e
com uma erudição excepcional. Marcel Bataillon discutiu comigo problemas erasmianos
e erasmistas, domínio em que era o mais consumado investigador da época
contemporânea. Mas Eugénio Asensio ocupou-se exclusivamente do Tratado
de Confissom, lendo, um estudo que veio mais tarde a ser publicado,
com o título de Une découverte
bibliographique, nos Arquivos do Centro Cultural Português de 1977. Recentemente, em 1986, uma distinta bibliógrafa, Rosemarie
Erika Horch, sustentou que o Sacramental, de que o único exemplar
conhecido, numa edição quatrocentista, existe na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, foi publicado em 1488,
também em Chaves, fundando-se, para
tal afirmar, num testemunho indirecto.
Na verdade não repugna
aceitar que a data do Sacramental seja anterior à do Tratado
de Confissom. Infelizmente, porém, o exemplar da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro é mutilado, faltando-lhe exactamente o fólio em que devia
aparecer o colofão. Estou, contudo, convencido de que a tipografia de língua
portuguesa deve ter aparecido em Portugal na década de 1480, embora não possa apoiar,
com documentos indispensáveis, esta minha convicção. A qual, por isso mesmo,
não pode ser apresentada em termos científicos, exactamente como a hipótese da
distinta bibliógrafa Rosemarie Erika Horch. Levar-me-ia muito longe esta breve
dissertação se, agora, me dispusesse a pôr em evidência aspectos fundamentais
do texto. De facto, trata-se de um fresco colorido da sociedade portuguesa do século XV.
Nesse fresco encontramos desenhado o gráfico existencial do homem português
antigo, nas suas grandezas e nas suas misérias. Talvez que a parte mais
original do Tratado de Confissom seja aquela em que o autor
anónimo, que Eugénio Asensio pensa ser um franciscano observante, faz a
exaltação do homem, na esteira do De
hominis dignitate de Giovanni Pico della Mirandola, e
critica pesadamente a corrupção eclesiástica, citando S. Francisco e exaltando
o espírito de pobreza. Seria, porém, exorbitar do tema, pois, nesta nota,
propus-me apenas recordar algumas ocorrências do debate que se travou em 1965, quando tive a sorte de
identificar ou descobrir, como autêntico, um novo incunábulo que, na expressão
de Eugénio Asensio, supposait une
petite révolution dans I’histoire de Ia culture portugaise et une grande
révolution dans celle de Ia typographie». In Lisboa, 13 de Dezembro de 1988.
In José Pina Martins, De como
Identifiquei o Tratado de Confissom, Chaves 8. VIII, 1489, Revista ICALP, vol.
15, 1989.
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