quinta-feira, 15 de maio de 2014

O Malhadinhas. Mina de Diamantes. Aquilino. «E, porque torna, porque deixa, ali fiz a cama à mulher. E, tão bem feita ela foi que Barrelas toda, à hora de ceia, foi alvorotada com os gritos da Joaquina. Mas dia foi esse que o Duarte passou a ser rei na casa em que só havia mandona»

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«(…) Mas, como ia dizendo, o Duarte, que era um homem liberal e fala-barato, convidou-nos de tão boa gana que largámos do abrigo do Ramalhal, onde estávamos a tomar o sol, atrás dele. Na adega, com broa dos tabuleiros, tão rescendente que consolava, e uma lasca de presunto, que bailava da trave à dependura, cascámos-lhe. Estávamos nós na santa função, apareceu a mulher do Duarte. Conhecem-na com os dois pêlos virados no queixo como anzóis e umas canelas sempre tão negras e magras que até parecem flautins para os cães!? Arreda! A homem ruivo e mulher barbuda de longe os saúda.
- Fogueira parta os bêbados!, começou logo a gritar. – Quem quer o fole cheio, vá à taverna e puxe. Este homem há-de desgraçar a casinha... Mas deixa, é mãos rotas para os amigos... os amigos hão-de lhe arrancar os olhos e verter água nas poças! O Albino, posto que homem correntão, ficou varado; o Meses, com a vergonha, pôs-se mais vermelho que o palhete. Adiantei-me eu a fazer face à serpente com as manhas que me ensinou o padre José Farrusquinho: a quem te der uma pássara, dá-lhe a sua asa: - Viva lá, tia Joaquina, viva lá! Então sempre na lidairada?! Duarte, chega-me uma canequinha aqui à tua mulher. Vá, que governadeira assim nem de encomenda. Cachorro da sorte, podias pintar-te com ela num retábulo! Podias, que to digo eu! Sem uma mulheraça destas estavas de pernas ao ar. – O tio Malhadas sempre tem coisas!, disse ela, quebrando a fúria. – Esta tia Joaquina põe o ramo. Olhem-me para ela: é o espelho das donas de casa! Há por aí no povo melhor? Isso há ele, nem por todas essas Europas do mundo! Nem que acendessem um archote a procurar.
E a burgessa mais e mais enchia os ricos pucarinhos de Molelos e nós pingueiros como cachos. Mas baixou a noite e a criatura girou à vida, que já os porcos chamavam do cortelho pela vianda e punham mais esparrame que uma filarmónica emborrachada. E então chegou a vez de eu me vingar das vozes de bêbado e caloteiro com que ao intróito nos brindara. O Duarte estava meio tocado; embora, a palavra, como a lança, longe alcança! - Raios te partam, homem, disse-lhe eu, mais à aldrúbia que meteste em casa. Não viste o espalhafato com que rompeu! Mil diabos a levem mais à barca que para cá a passou! Irra, irrório, senhor Gregório! Eu cá se fosse a ti, ó Duarte, chapa batida, chapa gasta, dava-lhe todos os dias, ao deitar e levantar da cama, uma sova de criar bicho. Pois ele pode haver maior colondrina por esses mundos fora? E andas tu nas mãos dela como um frangalho?! Terçã te coma, Duarte, mais à bochada de carneiro que Deus te deu!...
E, porque torna, porque deixa, ali fiz a cama à mulher. E, tão bem feita ela foi que Barrelas toda, à hora de ceia, foi alvorotada com os gritos da Joaquina. Mas dia foi esse que o Duarte passou a ser rei na casa em que só havia mandona. Que a minha língua era ruim e envenenada? Aí está o seu malfazer, endireitar o mundo que andasse torto. Dela não temo as contas que hei-de dar a Deus porque ainda que a minha voz não seja como a ronca do touro quando canta os latins, é de falsete só no nome. No mais foi, é, e sempre será leal-verdadeira». In Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas, Mina de Diamantes, Assembleia da República, 2007, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-25-1631-0.

Cortesia Bertrand/JDACT