A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história)
«(…) A história-teoria é, feita, não paira, não se revela aos iluminados
como Deus aos místicos, constitui antes o produto de um laborioso, complexo,
técnico, colectivo e individual trabalho. Não será, pois, inadequado procurar saber,
em rápida síntese, o que fazem os homens que actualmente produzem (investigando,
ensinando) História, designadamente a tal História que à partida nos serviu
de exemplo.
Antes de Abril de 1974
No longo período salazarista-caetanista creio que podemos discriminar
dois núcleos principais de docentes e investigadores ligados à ciência da História: um núcleo oficial, o dos tolerados e
subvencionados pelo sistema para reproduzirem a sua ideologia, investigadores
engaiolados dentro de estreitos limites (tal não significou que não se
transgredissem esses limites); e um núcleo não-oficial, à margem das universidades portuguesas, dos institutos,
da Academia, alguns instalados nos liceus, inseridos naturalmente na ideologia
compósita e até contraditória dos diferentes grupos sociais que directa ou
indirectamente se opunham ou combatiam o sistema.
Do primeiro grupo, numeroso porque profissional, porque detentor de
órgãos, de institutos, grupo repressor, silenciador (não se trata aqui dos
indivíduos mas do grupo),
se excluíam ou eram excluídos, através da expulsão das universidades e
de perseguições várias, os mais incómodos, os mais ingénuos, os menos
apadrinhados. Com esta exclusão se alimentava regularmente o grupo não-oficial. Este segundo grupo dos não-oficiais, liderado por expulsos
ou segregados da Universidade que encontraram asilo em França e noutros países,
marcou profundamente a evolução da ciência histórica no nosso país. Uma obra colectiva,
surgida entre os anos 1963-1971, o Dicionário da História de
Portugal, para lá das lacunas e insuficiências, traduz não só a renovação
operada no domínio da ciência da história como aglutinou os autores mais
significativos das últimas décadas.
Os limites em que trabalhavam os oficiais
eram tão estreitos que, aceitá-los à risca, implicaria a negação da própria
ciência histórica, a qual, como toda a ciência, constitui um corpo organizado
de conhecimentos que pretende com o
passado ver o presente e o futuro. Tais limites mergulhavam as suas
balizas no regime sufocante do fascismo português. Os comandos do aparelho do
Estado, que sobrevivia pela supressão das liberdades essenciais através da
censura, da repressão e do medo organizado pela polícia política (PIDE) e
organizações fascistas, estavam nas mãos das famílias que dominavam os grandes
grupos económicos e os latifúndios. A guerra colonial injusta em que o regime
mergulhara o País tornava o ambiente social e político mais sufocante. Na base económica,
uma agricultura atrasada, uma indústria recente e dominada, níveis de salários dos
mais baixos da Europa, uma emigração que constituía uma hemorragia mortal de
quadros jovens. Daí que todo o olhar claro fosse proibido; proibida a só
aproximação das regiões mais quentes
da História, época moderna e contemporânea, com a inevitável reflexão sobre
contendas e lutas sociais que não haviam chegado ainda ao seu termo; ignorado e
reprimido o curso legal das ciências sociais.
Os profissionais do primeiro grupo (não se trata de equacionar
capacidades pessoais) refugiavam-se então, em geral, nalgumas ciências
técnicas, ditas auxiliares, e na história-armazém, na história-bricabraque de
raridades, na história-loja de antiguidades. Desta história já Descartes se
persignara: narrativa de salão sobre a vida privada dos reis não tinha qualquer
utilidade; úteis e necessárias para a sociedade dos homens eram a física e a
medicina. Mas a tal história-armazém, a tal história-refúgio, cegava, entulhava
o entendimento com pequeninos factos, com pequeninas contas com que os
investigadores ornavam o colo empergaminhado. No altar da ciência histórica, imolava-se o corpo morto dos documentos.
Atingia-se o êxtase na pequena família quando se erguia ao alto, ratado ou
inteiro, um pergaminho desconhecido, de preferência heráldico. Para evitar os
profanos rodeava-se o acesso aos arquivos de dificuldades, por vezes
insuperáveis. Mas este culto do documento cansava logo após a leitura laboriosa
e difícil das letras. O resto, a passagem para o outro mundo, a outra leitura,
a leitura essencial, só era acessível aos génios amortalhados do passado ou aos
seus herdeiros e vigários, facto tanto mais grave quanto era doutrina assente
que a época dos Messias, como diria Leibniz, terminara». In António Borges Coelho,
Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção
Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
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