Inácio de Loiola
«(…) Durante a minha doença, quis o Senhor que me viesse o
desejo de ler, e pedi que me trouxessem romances de cavalaria. A Providência
determinou que em vez desses livros me viessem às mãos a Vida de Jesus Cristo e Fios
Sanctorum. Li-os, ao princípio com repugnância, depois com prazer e
afinal com entusiasmo. Quando a minha perna estava curada, bem outro era também
o estado do meu espírito: eu já não era um galanteador vaidoso, um soldado
sanguinário. Era um cristão. Aquela narrativa, que hoje em dia enfastiaria
soberanamente qualquer auditório, por menos ilustrado que fosse, era, pelo
contrário, escutada por aquela assembleia com uma atenção sincera e quase
febril. Com efeito, naquele tempo ninguém olhava com indiferença as coisas da
religião. O grande movimento, que se produzira na Alemanha, suprimira os
indiferentes e dividira-os todos em duas classes bem distintas: uma, que era
constituída pelos que respeitavam e obedeciam à Igreja romana, confessando-se
seus campeões; outra, que era formada pelos que se apresentavam para abalar as
bases do edifício do pontificado, fazendo ruir com ele todas as velhas
instituições que tinham o apoio e consagração da Igreja.
Ser indiferente naqueles tempos aos assuntos religiosos seria tão
impossível como nos ditosos dias de 1848
conservar-se estranho aos movimentos políticos. Era preciso tomar-se parte
naqueles ou nestes; ser por Lutero ou por Clemente, pela autoridade
eclesiástica, ou pela liberdade do pensamento. De uma e outra parte, a fé
estava de tal modo sobre-excitada, que nenhuma força humana poderia impedir que
as discussões fossem tempestuosas, violentas e irreprimíveis. Como acontecera
nos primeiros tempos do Cristianismo, o apostolado fazia-se à custa do
martírio. Paris, Madrid, Roma, queimavam os protestantes; Londres e Genebra
perseguiam e destruíam os católicos. E por isso aquela narrativa ascética de
Loiola correspondia tão exactamente às preocupações da ocasião, às agonias
daquelas mudanças constantes, que todos seguiam a manifestação daquele
sentimento religioso com o mesmo interesse que hoje despertaria o mais
comovente drama de ambições ou de amor. - Continua!... Continua!..., gritaram
de todos os lados. Inácio de Loiola sentia que todos os olhares o fitavam com
viva atenção; e a única paixão que o dominava, a de se impôr aos outros, quer
fosse pela admiração quer pelo medo, achava-se assim completamente satisfeita
nele.
Aquele convertido não tinha mudado nada quanto ao fundo do coração. Era
sempre o arcanjo fulminado, que levantava orgulhosamente a fronte para o céu,
vencido mas não abatido pelo raio de Deus: a sua ambição, assim tão duramente
desviada dos esplendores mundanos, tinha mudado de direcção, mas nem por isso
tinha diminuído. Quando eu senti que a graça divina despertava em mim os
sentimentos adormecidos, prosseguiu com voz mais segura o peregrino, voltei-me
para a Virgem, e diante do altar dela fiz voto de castidade. Depois resolvi
fazer a vigília de armas, que tem de fazer todo o cavaleiro, antes que possa cingir
o sagrado cinto da ordem. Uma noite inteira passei diante do altar, orando,
chorando, consagrando-me todo à milícia de Cristo. No dia seguinte pendurei a
minha espada num pilar da igreja, dei a um pobre os meus trajes de cavaleiro,
cingi o corpo com uma corda, vesti-me de burel, e dirigi-me a pé para Manresa. Que mais vos direi, meus irmãos?
Amparado por uma fé sobre-humana, castiguei o corpo com mil penas e tormentos;
infligi-me as mais cruéis privações, sem que nada pudesse alterar a minha saúde
de ferro. Cingi os rins de cilícios; dormi na terra fria, mendiguei de porta em
porta, e julgava-me feliz quando recebia mau tratos ou injúrias, que vinham aumentar
o valor da minha expiação.
Finalmente, a seiscentos passos de
Manresa encontrei uma gruta oculta a todos os olhares. Foi essa que eu escolhi
para minha habitação; aí recebi os tormentos e as privações como um favor do
céu; aí experimentei as doçuras do êxtase divino e o langor da morte aparente. Enfim,
meus irmãos, foi aí que... Neste ponto Inácio fez uma pausa, como quem se
assustava que ia dizer. - Fala, fala!, gritaram de todos os lados. Pois bem,
prosseguiu o peregrino, fazendo um grande forço, foi aí que me apareceram os
anjos do Senhor e que ensinaram a maneira de guiar os homens e de os conduzir à
fé obediência, ao caminho do céu. Os preceitos que eles me ensinaram, meus irmãos,
escrevi-os, e tenho-os aqui, e Loiola mostrou folhas que tinha ao lado. Com
estes Exercícios espirituais,
escrevi enquanto os anjos mos ditavam, encontrei o modo de reduzir à submissão
as almas mais rebeldes, e de fazer com que elas sejam nas mãos do seu director
espiritual como um cadáver nas mãos do cirurgião. Estas palavras resumiam em si
a terrível doutrina da Companhia de Jesus, que Inácio de Loiola devia fundar. Perinde ac cadáver, como um cadáver, tal é a forma de
obediência imposta aos jesuítas». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História da Europa
Medieval e seus costumes, tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C, 1848, Rio de
Janeiro, 1947, corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil, 2009.
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