quarta-feira, 14 de maio de 2014

Damião de Góis. The Life and Thought of a Portuguese Humanist. Elisabeth F Hirsch. « A reforma académica de João III veio demasiado tarde e foi, portanto, menos eficiente do que se tivesse sido iniciada a tempo. A tolerância do rei para com vários grupos de humanistas de convicções largamente divergentes já não estava de harmonia…»

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O Humanismo em Portugal no reinado de João III (1521-1557)
«Damião de Gois desembarcou em Lisboa em Agosto de 1545, possivelmente sob o domínio de fortes emoções. Tendo saído de Portugal ainda moço, voltava agora como humanista de renome, casado e pai de três filhos. Com que orgulho não teria apresentado a Johanna o porto movimentado e a colorida cidade de Lisboa no cimo de altivas colinas! Mas era um regresso ensombrado. Johanna tinha trocado o seu mundo familiar por um país totalmente estranho, e o próprio Damião não negava que teria preferido viver no estrangeiro. Embora parecesse contar com um futuro brilhante na pátria, ao chegar encontrou Portugal mergulhado num aceso debate intelectual, que acabou por afectá-lo pessoalmente, e aflito com dificuldades económicas. Góis conta que o rei Manuel I tinha incutido nos filhos o amor pelo saber e pela cultura. e que o Príncipe João, seu sucessor, tinha recebido uma sólida formação historica. Desse modo o rei parecia bem apetrechado para modernizar as instituições de ensino superior em Portugal, uma vez resolvidas as questões no ultramar. É surpreendente que as gerações posteriores não tenham devidamente reconhecido tudo quanto ele fez, mas talvez nenhum outro dirigente português se tenha prestado tanto a juízos erróneos. João III tem sido descrito como fanático, hipócrita, homem de escassa cultura, e é precisamente um dos propósitos deste capítulo apresentar dele uma imagem mais realista. Veremos que não era tão fanático como pretendiam os seus inimigos e que a Inquisição (maldita) era tanto um instrumento calculado para aumentar o orçamento como para eliminar os hereges. A atitude que adoptou na controvérsia sobre a Igreja Etíope já demonstrou o seu pragmatismo, que os seus opositores classificavam de hipocrisia.
A reforma académica de João III veio demasiado tarde e foi, portanto, menos eficiente do que se tivesse sido iniciada a tempo. A tolerância do rei para com vários grupos de humanistas de convicções largamente divergentes já não estava de harmonia com a rápida evolução na maneira de pensar do século. Ao associar-se com humanistas liberais, erasmistas e conservadores, assim como com os Jesuítas. João III mostrava ter um espírito muito mais aberto do que qualquer outro governante da sua época, mas foi exactamente essa faceta da sua reforma que não lhe sobreviveu por muito tempo. A vida académica em Portugal foi em breve encaminhada para uma única via e, em consequência, os esforços de João III para estabelecer uma comunidade culta, composta por elementos variados, foram vistos a uma luz negativa.
Gil Vicente marcou o início do florescimento cultural do Portugal quinhentista, assim como Luís de Camões marcou o seu fim. Gil Vicente, favorito da corte, foi autor de numerosos autos que tiveram um vasto público. A enorme produção literária deste poeta assim como os seus escritos reflectiam uma era de grande orgulho nacional e uma certa tendência para a crítica social e religiosa. Gil Vicente apoiava com entusiasmo a expansão além-mar do seu país mas, da mesma maneira que outros autores portugueses, como o historiador João de Barros, referia-se ironicamente à degradação da vida monástica, e, tal como o humanista flamengo Clenardo, censurava as camadas mais altas da sociedade portuguesa pela sua indolência e amor do luxo. Conquanto os seus laços com a Idade Média fossem acentuados, exprimia às vezes ideias bastante modernas. Em 1531, num discurso que ficou famoso, feito aos frades dum mosteiro em Santarém, o poeta descreveu dois mundos, o mundo de Deus e o mundo do homem. Pintava um quadro colorido do universo de Deus, eternamente igual, realidade imutável, enquanto que imaginava o mundo dos seres humanos como um fluxo constante, um eterno devir, essencialmente uma luta entre opostos como o verão e o inverno, a noite e o dia, e, por causa dos seus paradoxos, um enigma para a compreensão do homem». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.

Cortesia de FCG/JDACT