terça-feira, 21 de setembro de 2010

Henrique Caiado, Hermicus Caiadus: As poesias de Henrique Caiado revelam-nos um carácter divertido, folgazão, amigo de agradar, dedicando poemas a toda a gente que apreciava ou simplesmente conhecia. A sua obra chegou ao conhecimento de Erasmo de Roterdão que nos dá notícia da sua morte em 1509

Cortesia de arlindocorreia 

Com a devida vénia a Arlindo Correia, http://www.arlindo-correia.com/081106.html, publico algumas palavras do estudo referente a Henrique Caiado.

Em 1878, num livro sobre a vida e obra de António Urceo, chamado Codro, o italiano Carlo Malagola lamentava que os portugueses não dessem mais atenção ao poeta novilatino Henrique Caiado, cuja obra apreciava. Em 1994, o Prof. Américo da Costa Ramalho, pelo contrário, achava injusto que no estrangeiro se desse tanta atenção a Henrique Caiado, passando-o à frente de outros poetas portugueses de grande mérito, que escreveram em latim, como André de Resende, Diogo de Teive, Inácio de Morais e Diogo Pires.
Ao fim e ao cabo, ambos têm razão.
No decurso do sec. XX, a obra de Henrique Caiado foi sendo estudada e divulgada, as Éclogas republicadas e traduzidas para francês e português, os epigramas publicados em tradução italiana e publicadas alguns artigos importantes sobre ele. No entanto, a monografia pretendida por Malagola está ainda por escrever. Falta traduzir o segundo livro de epigramas e, sobretudo, falta anotar o livro de poesia de Caiado.

Cortesia de arlindocorreia
Henrique Caiado, que mais tarde adoptou o nome poético de Hermicus Caiadus, nasceu em Lisboa, filho de Álvaro Caiado, por volta de 1470. Estudou latim e gramática em Lisboa com Pedro Rombo, como refere André de Resende na Oratio pro rostris:

Todavia, em nossos dias, muito honrou a nação lusitana, Henrique Caiado, poeta comparável aos antigos, que Desidério Erasmo, varão de agudíssimo engenho, um segundo Aristarco no julgar os escritores do nosso século, de tal modo louva, que, fazendo o elogio do nosso Henrique, grande inveja causa aos povos que não gostam do nome lusitano. Este mesmo notável vate iniciou, nesta Escola, a sua carreira literária sob a orientação do gramático Rombo antes de partir para a Itália que lhe foi fatal. Tradução de Miguel Pinto de Menezes.

Foi estudar para Itália, como era costume em Portugal naquele tempo. Dirigiu-se a Bolonha onde conheceu Cataldo Parísio Sículo, que veio para Portugal em 1486. Calcula-se que tenha chegado àquela cidade em 1485, com a intenção de estudar Direito. No entanto, o jovem estudante é atraído pelo estudo das Humanidades e desloca-se para Florença. Porém, tem o desgosto do falecimento do seu mestre Ângelo Poliziano ou Politianus. Regressa a Bolonha, onde é aluno de Filipe Beroaldo Sénior, por quem demonstra muita admiração nos seus versos. Filipe Beroaldo era muito amigo de outro português Luis Teixeira e existe uma interessante troca de correspondência entre os dois:

Carta de Luís Teixeira a Filipe Beroaldo – 1-2-1501, Bolonha 
Os poemas do nosso Português, que na maior parte, aliás, percorremos um a um, separados e desligados, foram há pouco reduzidos e organizados como que em um só corpo, formando uma obra simples, extensa e vária, susceptível de proprcionar a máxima admiração e prazer a quem os ler e analisar mui de espaço um por um. A tal ponto que verdadeiramente me parece que posso dizer que todas as ciências desceram do céu para nosso proveito, e a poesia para nossa delícia. Oxalá eu pudesse divulgar sem suspeita de lisonja o que penso dos seus versos e do seu engenho. Mostraria, por certo, não só quanto o nosso poeta sobressai entre os Hispanos, mas também quanto rivaliza com os vossos. Diria que ele compete abertissimamente com os antigos. Felicitaria também o meu ínclito Príncipe de Portugal, não só por sob o seu feliz e providente império, um novo mundo e novas estrelas refulgirem, mas também (e assim se saberá que foi totalmente senhor da sua fortuna) por se ver entre tantas maravilhas um homem de talento novo e prestantíssimo, certamente para que não falte quem possa escrever, tanto aquilo que há pouco por mercê de Deus foi descoberto, com o que agora o Augustíssimo Rei mui corajosamente planeia. Mas, porque quanto mais sério for o juízo sobre os méritos dos homens ilustres mais verdadeiro se considera, e ao mesmo tempo, para não parecer exalçar com excessiva benevolência o meu concidadão, remeto tudo isto para ti, doutíssimo Beroaldo, de quem, como oráculo da cidade que és, todos podemos tão legitimamente receber uma resposta como tu dá-la. Adeus.

Carta de Filipe Beroaldo a Luis Teixeira - 13-2-1501, Bolonha
Consultas-me, em carta elegantemente escrita sobre o que penso do talento poético do teu concidadão e dos seus poemas. Ei-lo resumidamente. O Português Henrique é engenhoso, elegante e florido na feitura dos poemas; tem graça, tem sal. São latinas as suas palavras, poéticas as sentenças, polidos os versos. Remata, segundo a norma dos epigramatistas com elegância e com espírito. Eu admiro realmente os escritores antigos, mas não, todavia, por forma a desprezar os modernos. E palavra de honra, quando leio os bem torneados versinhos de Henrique e os teus escritos admiravelmente perfumados de saber grego e latino, vem-me à memória que a Espanha produziu nos tempos antigos os maiores filósofos, os mais fecundos oradores, os mais ilustres poetas, sendo ela, no entanto, também no nosso tempo capaz, uma vez que não está de modo nenhum esgotada, de criar engenhos fecundos nas Belas-Artes, em nada desmerecedores daquela felicidade dos antepassados. E entre estes tu, meu caro Luis, brilhas em primeiro lugar, e juntamente contigo, Henrique, cuja musa é esplendidamente harmoniosa, e na qual quanto de autoridade lhe derroga a novidade, tanto de gracioso lhe concilia a elegância. Adeus, e estima-nos, porque te estimamos. Tradução de Miguel Pinto de Menezes.

Bolonha, Itália
Cortesia de diplomatatours
Entretanto seu tio Nuno Caiado e o próprio Rei de Portugal insistiam com ele para que se dedicasse ao estudo do Direito:

A Nuno Caiado
Obrigas-me, Nuno, a aprender o direito civil e mandas-me até desfazer-me da minha cítara. Mas quem troca os doces cantos por violentas disputas? Quem prefere os ásperos litígios às nossas brincadeiras? As leis implicam lágrimas, queixas, perjúrios, disputas, delitos que não se podem impedir e enganos inevitáveis. Quem pode fixar com olhar sereno os pecados dos culpados, comp se podem suportar os prantos com ânimo insensível? Eu escutar como palermices as mentiras do foro? Eu dar ouvidos atentos aos estúpidos dos advogados? Como é agradável ler atentamente a história, que recorda os feitos dos varões antigos e assim conhecer os costumes dos homens! Porque deveria aprender os pensamentos escondidos numa nuvem arcana? Porque deveria descrever os mistérios sagrados em modos incompreensíveis? Junta-lhe também as luzes esplendorosas da abóbada do universo, as causas das coisas e o conhecimento dos deuses. Ainda que me dessem o Pátolo ou o Ermo, eu estas coisas não as venderia: a vida e a morte são as mesmas para todos. Porque, se eu tivesse necessidade de riquezas e do amarelo metal, tu não suportarias certamente que as musas me fossem pobres. Que outros se curvem debaixo das casas dos duques e das moradas dos mais poderosos: tu podes substituir para mim todos os reis. Tradução feita a partir da versão italiana de Rita Biscetti.
Já depois de publicados os seus livros, decide-se finalmente a estudar Direito a sério:

A Nuno Caiado
Nuno, ocupo-me agora com as leis, seguindo as tuas ordens; na realidade, podes dar-me ordens, quer como pai, quer como senhor. A ti devo a minha inteligência, a inspiração poética, a própria vida: César não pode dar mais, nem mesmo um deus pode dar mais. Tradução feita a partir da versão italiana de Rita Biscetti.

As poesias de Henrique Caiado revelam-nos um carácter divertido, folgazão, amigo de agradar, dedicando poemas a toda a gente que apreciava ou simplesmente conhecia.

Rovigo, Itália
Cortesia de cuoretriveneto
Entretanto, trabalhos mais recentes em Itália dizem-nos que em 28 de Outubro de 1499, Caiado celebrou com as autoridades de Rovigo um contrato para exercer as funções de professor da Escola Pública local. Antes de ir para Rovigo, Henrique Caiado estava em Ferrara onde era amigo de Celio Calcagnini.
A Oitava Écloga é dedicada a Zaccaria Contarini, podestà de Rovigo.
Constata-se, assim, que Henrique Caiado era um autêntico «andarilho» em Itália. A sua facilidade em fazer versos fazia dele um tipo simpático, tanto assim que diziam «Ecce vadit theca apollinaris!», («Lá vai o cofre de Apolo!»), diz-nos o Padre António dos Reis no seu Corpus.

Barbosa Machado afirma que ele se licenciou em Direito na Universidade de Pádua em 1503. Isto não é verdade. Em 15 de Outubro de 1504, no doutoramento i.u. de Filippo Decio, (E.M. Forin, 5.º volume, n.º 347), ele é indicado como testemunha com o qualificativo i.u. scolaris. A mesma Elda Martellozzo Forin afirma que no Verão de 1505 ele era ainda estudante quando fez o elogio fúnebre do Professor Francesco Fazi que teve depois honras de publicação.
É enorme a lista das pessoas a quem Henrique Caiado dedicou poemas, tanto portugueses como italianos:
  • António Galeazzo Bentivoglio;
  • Mino Rossi;
  • Guido Pepoli;
  • Antonio Albergati;
  • Cavaliere Casio;
  • ( ... )
  • Benedetto Barbazza;
  • Thomas Langton;
  • D. Pedro, Bispo da Guarda;
  • Diogo de Sousa;
  • Febo Moniz;
  • Diogo Pacheco;
  • Luís Melo, Martim Figueiredo
  • ( ... )
  • João Castelo Branco;
  • Gomes de Lisboa;
  • Nuno Caiado, seu tio;
  • Arcediago Luís Caiado, seu irmão, doctor in utroque;
  • Cataldo Parísio Sículo.
Henrique Caiado aparece referido muito apreciativamente na obra de Lilio Gregório Giraldi, Dialogi duo de poetis nostrorum temporum publicada em 1551:
«Hermicus Caiadus, noster poeta Lusitanus fuit Ulysiponensis in epigrammatibus felix, in oratione soluta facilis ac promptus, ut ait Erasmus in Ciceroniano". Quae cum de Hermico dixisset Didacus: "Videris mihi – inquam – Pyrrhe parum de facie, quod dicitur, et corporis filo Hermicum novisse, qui tam pauca de eo tu et Erasmus dicatis. Fuit enim Hermicus Caiadus poeta vester, qui in Lusitania Hericus vocabatur, obesulus corpore, sermone festivus, in Italia, Florentiae, et Bononiae versatus Politiani et Beroaldi tempore, quorum et disciplina et familiaritate usus. Fuit et hic Ferrariae, ubi consuetudine mea et Coelii Calcagnini usus est, sed imprimis Petri Ant(onii) Actioli et N(icolai) Iacobeli causidici eximii: Nic(olaum) vero Paniciatum, virum probum et doctum ac etiam poetam nostratem, qui hic publice profitebatur, aversabatur, quod austerior cum sermone tum moribus videretur». Dialogi duo de poetis nostrorum temporum, Florentiæ, 1551.

Erasmo de Roterdão
Cortesia de professorpedrowordpress
A certa altura, a obra de Henrique Caiado chegou ao conhecimento de Erasmo de Roterdão. E é este humanista quem nos dá notícia da sua morte em 1509, ocorrida de um modo muito estranho, sufocado pelo álcool do vinho:

Conheci pessoalmente em Roma um homem de uma erudição pouco comum que morreu desta espécie de angina. Chamava-se Henrique, e era de nacionalidade portuguesa. Excessivamente obeso e, por isso, propenso a faltas de ar, tinha ficado com um pouco de febre. Estava acamado, quando o Inglês Christophe Fisher o veio visitar, e lhe disse: “Henrique, vais dar atenção aos médicos e às suas estúpidas receitas? Com um bom vinho, vais curar a tua maleita.” Assim, fez-lhe trazer um vinho da Córsega, de quatro anos. Serviu-o ao doente, dizendo-lhe para não se preocupar. Este seguiu o seu conselho e bebeu com abundância, mas, perdido o fôlego, entregou a alma a Deus. Tradução feita a partir da versão francesa de M. Bataillon.

Henrique Caiado tinha uma grande consideração por seu irmão, que é identificado como Doutor iuris utroque e Arcediago de Lisboa, a quem dedicou o seguinte epigrama:

Ao Arquidiácono Luís Caiado
Se a piedade, se a antiga probidade fossem cultivadas
e o justo valor fosse dado à virtude e à santa religião,
mais famoso e em lugar de mais relevo, ó Luis, terias assento,
e havia de resplandecer a tua fronte com o barrete de púrpura,
e o rebanho havia de reclamar-te por pastor ao Tonante
e por tuas pastagens lono algum vaguearia;
mas, pelo contrário, séculos de oiro haveriam de refulgir com o louro metal,
e o crime eterno seria condenado ao exílio.
Mas já que fados próprios regem homens e deuses,
e a Fortuna faz e desfaz as suas voltas,
vive, honra única do bem e nova glória do teu irmão,
vive por largo tempo, protecção de nossa raça.
Possa bastar-te um lugar não derradeiro na cidade pátria,
Possa bastar-te, até, que fique um pouco aquém de teus merecimentos.
Tradução do Prof. Carlos Ascenso André (em Mal de Ausência).

Alguns dos epigramas de Henrique Caiado, com tradução feita a partir da versão italiana de Rita Biscetti:

A Lourenço Moniz
Um mensageiro tinha dito que Rombo caíra ferido pelas velozes setas, mensageiro que se me tornou muito antipático: de facto, eu anteponho a salvação do meu mestre à minha, já que os meus poemas derivam da sua inteligência. Tudo o que eu tenho de ciência e arte, foi ele quem mo deu, príncipe e glória dos gramáticos. A tua carta, Lourenço, informou-me que Rombo está vivo, uma carta tingida na água do Lago Castálio. Que Júpiter conceda a Rombo os anos de Questor, que o próprio Rombo possa viver os dias de Titão. E que também a ti, que me trouxeste tanta alegria, caiba a honra de uma longa posteridade.

Epitáfio de Camilo Vitélio
Ó tu, peregrino que por acaso chegaste a estes lugares, trava os teus passos e lê os versos esculpidos no mármore. Aqui jaz (infelizmente vítima de um cruel destino) Camilo, poderoso nas armas, por todo o lado terror dos seus inimigos. Vitélio era um raio na guerra e um terror entre as armas. Só o prejudicou a sua enorme força de ânimo. Luz da pátria e esplendor da sua raça, única esperança dos seus, morreu raptado do meio do caminho da sua vida. A terra possui os seus restos, mas a fama da sua virtude viverá todo o tempo e o seu espírito sobe ao alto dos céus.
Bartolomeo Bianchini
Cortesia de nationalgallery
Uma honrosa referência a Henrique Caiado é a que lhe faz Bartolomeo Bianchini na biografia que precede a edição de Basileia das obras de António Urceo Codro (1540), com o título «Codri Vita a Bartholomæo Blanchino Bononiensi condita ad Mimum Roscium Senatorem Bononiensem».



As Obras publicadas:
  • 1496 – Eclogae, Bolonha, Impr. Justinianus de Ruberia (6 primeiras éclogas);
  • 1501 – Aeglogae et silvae et epigrammata Hermici, Bolonha, Impr. Beneditus Hectoreus (9 éclogas, 3 silvas e 2 livros de epigramas), http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k60268c;
  • 1504 – Hermici oratio cum epistola ad Bartholomeum Blanchinum Bononiensem, Veneza, Impr. Bernardinus Vitalis Venetus. (3 textos);
  • 1507 – Hermici oratio cum epistola ad Ludovicam Leonem Patavinum iuris consultum, Veneza, Impr. Bernardinus Vitalis Venetus. (3 textos).
Padre António dos Reis, Corpus illustrium poetarum Lusitanorum, Lisboa, 1745, 1.º vol. Pgs. 35-259, http://books.google.pt/


Cortesia de Arlindo Correia/JDACT