A História é Geográfica
«(…) E como o
sistema-mundo moderno pôde e teve de estender-se por todo o mundo para envolver
todas as partes sob o mesmo regime, o mesmo complexo histórico-geográfico, como
diria Magalhães Godinho, não existe nenhuma zona que escape a estas
consequências globais. A ruptura social exprimiu-se através da criação de um
sistema capitalista que pôde sobreviver e consolidar-se no seio de uma
economia-mundo. O leitmotiv
do capitalismo é a acumulação incessante
do capital. O resultado é que os que triunfam são, na maior parte, os que
recusam obrigações sociais com o fito de maximizar o rendimento imediato da
empresa. Um elemento central desta maximização é a externalização máxima dos
custos de produção.
Há três métodos
principais para externalizar os custos. Despeja-se noutro lado os restos da
produção, sobretudo o que for tóxico. Não se tem preocupações a respeito da
reprodução das matérias-primas da produção. Depende-se de outros (sobretudo
das autoridades públicas) para construir as infraestruturas que facilitam o
transporte e a comunicação. Na medida em que possa escapar-se a estes três
custos de produção, a margem de lucro aumenta.
De início, era simples,
em certo sentido. Primeiro, as
estruturas burocráticas capazes (se quisessem) de limitar os excessos
eram muito débeis e dispersas. Em segundo
lugar, estas acções pareciam legítimas e, em todo o caso, a aliança na
prática entre os produtores e as autoridades públicas era suficientemente forte
para que não se suscitassem tais questões. Em terceiro lugar, as zonas relativamente vagas para receber os
resíduos, as zonas relativamente abundantes para obter as matérias-primas,
faziam com que não se tivesse muita consciência dos danos ocorridos. Enfim, e
esta é talvez a explicação mais fundamental, em geral os custos eram pagos pelos pobres e pelos outros
e não tinham um impacto real sobre a vida das elites.
Em todo o caso, foi
preciso que passassem pelo menos quatro séculos para que estes danos se
acumulassem ao ponto de haver uma reacção política importante, o que significa
os últimos 30 anos. Chegou-se a um momento em que se começa (com justa causa) a
recear consequências difíceis de remediar, consequências que ameaçam tanto as
elites como as camadas marginais. Vistas em conjunto, as relações entre
o mundo físico-geográfico e o mundo social já viram melhores dias.
A unicidade da história
O homem real não é actor separadamente de uma história politica, de uma
história económica, etc.; todo ele intervém integralmente numa história única,
que é a história da sua plurifacetada mas uma actividade. In Godinho,
1971.
O que me atrai nesta
citação é que Godinho começa por
falar do homem real, em contraste implícito com o homem abstracto que tantos analistas
constroem. E, a partir deste sólido rochedo, chega à conclusão de que a
actividade do homem é composta por múltiplos aspectos, mas permanece, apesar
disso, única ou unificada, aquilo a que chamo a unicidade da história. O
seu grande livro, mas também os seus múltiplos ensaios, reflectem fielmente
este compromisso com a totalidade, que é um compromisso com a realidade vivida,
concreta. Ele não fala numa abordagem multidisciplinar, mas numa abordagem unificada,
o que constitui uma nuance essencial.
É que não se trata de um agregado de dados recolhidos separadamente por
investigadores distintos e diferenciados, mas de factores / aspectos / elementos que intervêm integralmente numa
história única. Ele faz sua uma aspiração que é a aspiração de uma
minoria de investigadores e que só é realizada por uma minoria dentro desta
minoria, por ser tarefa eminentemente difícil. A dificuldade reside, não na
amplitude da investigação (falso problema), nem na escrita sintética (que
está ao alcance de todos os que têm uma visão clara), mas sim na
conceptualização. A conceptualização é difícil porque se faz a contrapelo, porque
exige que nos desembaracemos das nossas socializações intelectuais, das
hipóteses de tal modo interiorizadas que nem sequer nos damos conta disso. Para
ir além destes preconceitos nocivos, é necessário des-pensar os nossos
saberes.
Quando se observa o
plano de obra do seu grande livro, não se trata de nada que não seja económico,
o próprio título do livro, os títulos das três partes, os títulos de vários
capítulos, todos empregam a palavra economia ou outras palavras
tradicionalmente ligadas à economia. E,
no entanto, quando se lê o texto, está-se liberto deste espartilho. Percorre-se
o mundo real sem que nos apontem isso como uma espécie de travessia de
fronteiras. Porque é que é tão difícil para nós despirmos esta tríade
enraizada, o económico, o político, o
sócio-cultural? Porque é que insistimos em pensar nestas categorias
como domínios, como acantonamentos,
quase como Estados soberanos? Também isso faz parte da ruptura do mundo
moderno, separando-o de outros sistemas históricos. Esta ideia ia progredindo
lentamente desde o século XVI, mas foi só no século XIX que ela foi consagrada e
institucionalizada nas estruturas universitárias reconstituídas. Mas porquê nesse momento?» In Immanuel Wallerstein, A descoberta da
economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde:
Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69,
2004.
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