«Apresenta-se-nos como constelação de estruturas, entidade colectiva
que transcende a soma das partes de que se compõe. Assim sendo, fica definido o
tema de uma ciência da sociedade, a
sociologia. Esse tema é a apreensão da realidade social na sua totalidade,
é o estudo cientificamente conduzido do que Marcel Mauss denominou de facto
social total. Coloquemo-nos numa situação concreta. Ao mercado acorre
um camponês que pretende adquirir trigo e tem leite para vender. Outros dos
presentes pretendem igualmente adquirir trigo, mas dispõem de dinheiro, uns,
outros vendem diferentes artigos. A análise económica abstrai-se das pessoas,
considera de um lado as ofertas - leite, trigo, ovos, panos, por exemplo, e de
outro lado a procura de cada um dos bens; joga com as quantidades oferecidas e
pretendidas, com as disponibilidades monetárias de compradores e vendedores.
Com base nestes dados, traçam-se as curvas de indiferença, pelas quais se
determinam os preços das mercadorias. Dir-se-ia estarmos numa esfera ou área estritamente
demarcada, a esfera do económico. Na realidade não é bem assim. Compradores de
trigo, vendedores de leite não são autómatos, cuja conduta se carrila
exclusivamente para estes actos, são seres humanos de vida complexa, cada qual
habituado a um sistema alimentar, com as suas preferências e necessidades, com
família a sustentar, ou que exercem a mercancia e vêm de longes terras. No seu
comportamento podem até interferir tabus
religiosos ou pressões das circunstâncias. Acreditar que, agentes económicos,
são norteados pela busca da utilidade máxima, e disposição a um esforço mínimo
não passa de construção artificial com base na racionalidade da conduta
(entendida essa racionalidade num sentido específico); ora as condutas podem ser,
são frequentemente, irracionais, se medidas por esse critério. Se queremos
compreender a fundo esse desenrolar de actos, na aparência estritamente económicos,
temos de não nos contentar com o guignol de marionetes que encarnam
abstracções e de animar a cena com homens de carne e osso, moldados desde a
infância por tradições, executando ritos segundo um sistema de crenças,
acreditando em valores, marcados por símbolos, ritmados por hábitos, abalados
por emoções, conformando-se com padrões de atitudes colectivas. Há a posição
social, com o fausto dos de mor condição no vestuário e na mesa, ostentando as
carruagens, nomeados pelas esplendorosas recepções; ou os burgueses de trajes
escuros e despesas contadas.
Mas também está em jogo o regime jurídico da propriedade, as normas a
que obedecem as trocas, eventualmente a organização de empresas e a mentalidade
empresarial. Porque não são actos sempre individuais, podem interferir
organizações, por exemplo, cooperativas de consumo ou cartéis de vendedores.
Nos simples actos de compra e venda está implicada toda a complexidade da vida
psíquica e da vida social. Cada facto remete-nos para uma teia de
circunstâncias, determinações, consequências cuja avaliação retrocede a orientar
a escolha e os cálculos de que se rodeia. É pois de factos sociais totais, com
a sua multiplicidade de facetas, tal como os entendia Marcel Mauss, que se
trata». In Vitorino Magalhães Godinho, Problematizar a Sociedade, Quetzal
Editores, 2011, ISBN 978-972-564-946-6.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT