Bastardos do Sol
«(…) Quando, na cozinha, encheu o primeiro prato de sopa, para lho
levar, e era a sopa de beldroegas que ele impusera, aquela de que mais gostava,
ficou, hesitante, a mirar essa comida que ia servir ao seu ídolo detestado e
cuspiu-lhe repetidas vezes para dentro, raivosamente, com um sorriso troçante,
mole, e falso, de cadela espancada e acorrentada. Enfrentavam-se, cada qual de
seu lado da mesa redonda, ainda nos mesmos lugares que ali ocupavam no tempo
dos pais. Não falavam para comunicar, mas tão-somente para pedir, o
estritamente necessário, ou para protestar, 36 horas de desafogo interior, em
que punham na luta, no ringue, um férvido e pungente regozijo. Pouco importava
o pretexto, quer fosse ele a queixar-se de ela não saber sequer fazer as camas,
como uma mulher a sério, ou ela a explorar-lhe a grosseria, respostas que espantava
toda a gente lá de casa, visitas ou criados, todos já de sobreaviso, claro, estava...
Como se não bastasse... Havia bem uma semana que aquela saleta não lhes ouvia
duas frases seguidas, desde que a miúda abalara, assustada como todas as servas
anteriores, velhas e novas. Era preciso, de resto, que a fome as acossasse para
transporem os umbrais de uma casa tão malfadada. Não posso mais com isto, disse Irisalva, como continuando uma frase interior,
como se a voz neutra, enevoada, lhe saísse de um sonho, não é o trabalho, é a
solidão, é a morte que mora connosco. Todos têm medo de ti! - Calas-te? É melhor que te cales…
Arménio, num dos seus repentes, com os olhos sobrancelhudos já a
chisparem faíscas e amarfalhando com os dedos a camisa, a própria pele do
peito, como se quisesse revulsar aquela cólera para fora do corpo: que, à
provocação contida em tais discussões, logo lhe ardia numa ânsia de destruição.
Todo ele intumescia nesse apetite de bater, de esmagar, de afirmar a sua justiça,
se alguém ousava acicatar-lhe o orgulho, contestar-lhe a autoridade a razão. Irisalva
não ergueu a luva. E, enquanto devorava, nervosamente, o lombo de borrego, com a
voracidade arreganhada das suas grandes excitações, pôs-se ela a imaginar na
morbidez daquela estranha solidariedade que, para além dos irremíveis agravos,
do ódio recíproco, os sobre mateve ante as censuras de fora. Espevitou os
carvões, na braseira que aquele Fevereiro áspero ainda requeria, e, sentindo um
calor de sono, de inalação, começar a possuí-la nebulosamente, abandonou-se,
abençoou a brandura desse cair, essa trégua fisiológica que era o melhor dos
seus dias.
Mas o cortejo de sons daquela noite consumava-se para lhe envinagrar as
feridas. Após a lamentação dos cães, que longinquamente tinham uivado durante
todo o jantar, rompia agora, através das paredes, aquela cantiga de algum
bêbado romântico, a que não faltaria um grave e fraterno auditório de ganhões
pronto a estimulá-lo, mesmo ali ao lado, na locanda da esquina da praça. E nem
um som se perdia no tecido puro, implacável, da noite. Tudo vinha atingi-la nos
nervos, e entrava por ela dentro, como uma chuva de farpas agudas e delicadas,
de incisivas e propositadas farpas; mas era já quase doce a dor que a invadia,
promissora de lágrimas.
Eu hei-de morrer de um tiro
à tua porta, querida,
para quem passe dizer:
por amor perdeu a vida!
Arménio sustentou o olhar dela, fixo e escuro, rasgado e molhado, tal o
das vacas que ele vira agonizar, de parto mal sucedido, quando ainda o
chamavam, como veterinário, para as salvar ou para lhes apressar o passamento.
O que o confundia nesse olhar dela, que o atravessava, que o ignorava, era a
ausência momentânea de ódio, banido pelo afluxo, pela amargura, pelo ardor, de
uma irresistível saudade. E novamente a voz daquele trovador sem rosto,
emergindo agora de um coro pastoso e dolente de ébrios mansos em véspera de
feira, cantava a fatalidade:
Eu hei-de morrer dum tiro
à porta da minha amada,
para quem passar dizer:
que morte tao desgraçada!
Depois tornou o silêncio a coalhar na saleta; e eles quedos, triturando
lástimas acusações por trás dos lábios endurecidos. Até que o pêndulo do
obsoleto relógio redondo, sobressaltando a parede quase nua, onde o tempo
murchara o cromado sevilhano, última sobrevivência dos gostos paternos, soltou
ironicamente dez badaladas musicais naquele mutismo cerrado». In
Urbano Tavares Rodrigues, Bastardos do Sol, Livraria Bertrand, Círculo de
Leitores, 1974.
Cortesia da Bertrand/JDACT