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A
Letra Pitagórica
«(…)
Para nós creio que o mais bonito é escolher os aromas simples que estão à nossa
volta:
Rosmaninho,
alecrim da nossa terra nardo e junça dos brejos
louvai
ao Senhor!
É lindo!, exclama Diogo. Nosso
padre São Francisco por certo gostaria. Ficámos calados algum tempo, revolvendo
na alma ideias e sentimentos suscitados por aqueles versos. Os nossos sentidos
não eram igualmente nobres, quebrava eu o silêncio. Como assim?... Reparasse.
As principais artes eram a pintura, a música, a escultura, queria dizer, as
manifestações da vida que se exprimem pelos olhos, pelo ouvido, pelo tacto: as
formas das coisas, a sombra e a luz, o claro e o escuro, as cores e seus
cambiantes; os sons, os ruídos, tons e meios tons, a voz humana, o vibrar de
uma tripa ressequida, o soprar por um tubo de bambu ou de metal, a percussão de
uma esticada e seca pele de boi numa caixa de ressonância, o tinir de metais, o
canto multíssono e multímodo das aves; o plano e o volume, o áspero e o macio,
o duro e o mole, os contornos boleados das dunas ou de um corpo de mulher, o
mármore e o bronze, o cinzel arrancando ao seio da madeira as três dimensões de
uma forma sonhada..., que sabia eu?... Podia haver arte na matemática do
movimento, adianta Diogo como a medo.
Sim, era verdade. A harmonia
celeste, a concinnitas
das esferas celestes de que falava Cícero no Sonho de Cipião e que, segundo Pitágoras, gerava uma
melodia astral. Movimento e sinfonia! Eis duas artes que se casavam na dança.
Ou melhor: na dança casavam-se três artes: o movimento, a música e a escultura.
Não se esquecesse o amigo de que os dançarinos eram estátuas arrancadas à sua estática imobilidade, que não estavam mas se moviam...
Não achava Diogo? Podia eu acrescentar mais uma, visto estar presente
o elemento visual. Tinha ele muita razão. Portanto, nos sentidos, como na
sociedade, havia os nobres e havia os..., ... os pobres!, rematava o meu
companheiro com uma gargalhada a coroar a rima, e concluía: os sentidos nobres
eram a vista, o ouvido e o tacto... Os pobres ... Os pobres são o olfato e o
paladar. Ora eu gostaria de reabilitar estes sentidos pobres, fazer por exemplo
a tal sinfonia de perfumes... Não me digas que também pretendes compor um Gloria Patri com os
sabores de um refogado, de um coelho à moda do Alentejo, de... Mas a ideia era
essa precisamente! Não estava a ver? Contudo era preciso elevar os paladares às
alturas da arte e do génio. Um Gloria
não o imaginava com o sabor do estrugido, mas o do coelho na caçarola vinha
a matar, se Diogo o pusesse de véspera em vinha de alho, com a folha de louro e
muitas ervas cheirosas como o tomilho, a carqueja, os orégãos, a hortelã, a
salsa. Quem mo dera ter ali naquele momento, que era um glorificar ao Criador
que tão boas coisas nos dera !... Amem !
Dois
dias depois estamos às portas de Évora, falamos dos meus escrúpulos em tomar
hábito, das minhas hesitações, de Hércules e da encruzilhada, do bívio pitagórico, e, por
escolha de Diogo, metemos pelo caminho errado, que nos afasta da cidade, sem
qualquer espécie de oposição da minha parte, que via nisso o adiamento de uma
definitiva resolução. O aqueduto, linha de referência a apontar-nos Évora,
deixara de se avistar. Diogo nem reparara no facto. Está descendo o crepúsculo.
Numa volta da vereda aparece uma pequena casa sombreada de pinheiros mansos que
desenham uma suave mancha verde-anil na neblina da paisagem dourada pelos
últimos raios de sol. Uma moça de uns dezoito anos tira água do poço quando nos
aproximamos. Deus a salvasse! Se lhe dava uma púcara da água, pede Diogo. Sem
uma palavra, ela mergulha um tarro de cortiça na selha e oferece-lho. Diogo
bebe lentamente, consoladamente. Ela observa-o, depois olha para mim. Também
tens sede? Tinha, respondo-lhe eu. Mas, desde que estou a olhar para ti, a
minha sede é outra. Diogo, atónito, pára de beber. Ela serenamente tira-lhe o
tarro da mão, deita fora o que resta da água, enche-o de novo olhando-me de
soslaio, com um sorriso brejeiro, e apresenta-mo: a tua sede é desta água,
loiraço duma figa!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva,
Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT