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e wikipedia e jdact
Explicação do sopro
«Século
XXI. Certos homens se fecham em quartos de hotel
porque
nos lugares anónimos é muito possível ficar encosta-
do
numa parede branca vendo a água correr no chão do chu-
veiro.
Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatro-
centos
e vinte quilómetros até achar a costa. Ao alcançá-la,
tiram
suas roupas e não mergulham: só encostam a zona lom-
bar
na areia e repetem até ao infinito a ladainha da tabuada
do
sete. Um bombeiro termina seu turno de vinte e quatro
horas
e entra no boteco junto à estátua de São Tarso. Pede um
conjunto
de sete pães de queijo e nos espaços entre cada um
dos
pães ele fica procurando por algum pedaço da túnica de
Deus.
O motorista do ônibus sabe perfeitamente que dentro
da
mala da senhora de rosto limpo tem uma caixa de jóias
que
contém uma caixa de medicamentos que contém uma
caixa
de anel que contém uma bala. O tocador de kalimba
está
muito consciente de que hoje o mantra nasce da mistura
de
um cântico de procissão com o latir do cachorro, e está
consciente
também de que todo o desenho acha sua acústica
perfeita
nas pequenas eremitas. Aquele que pinta a natureza,
o
ladrão de ossos, sabe que deve empreender seu trabalho em
posição
horizontal, de corpo muito junto ao chão. E se por
acaso
o observarmos no processo por mais de sete minutos,
podemos
reparar que sua caixa torácica constantemente toca
a
tela, sempre na mesma cadência. A moça de vinte e sete
anos
ainda está sentada ao toucador, de frente para o próprio
rosto,
absolutamente indecisa sobre qual dos objetos esco-
lher.
Entre o batom alaranjado, a carabina calibre 12, o pó
de
arroz e o crucifixo em miniatura vai uma distância de dois
passos
a galope».
In
Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições
Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.
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