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de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) Viena vivia os primeiros
dias de frio. Os aquecimentos ligavam-se para confortar os corações, tirava-se
a roupa quente dos armários, compravam-se os novos agasalhos da moda. Hans
gostava de dar os seus passeios diários pela Ringstrasse, alheio à chuva gelada
e ao frio cortante, corrompendo o ar com baforadas de vapor quente. Fechava os
olhos e sentia a respiração, durante alguns instantes. Deambulava sem destino
certo, como a vida. Dizia-se que Freud também os dava e não lhe era difícil
compreender a razão. A vida pululava indiferente. Os sorrisos, os gritos,
alguém a chamar o nome de alguém, as lojas iluminadas e apelativas. Por vezes
passava no Café Schwartzenberg para tomar um café quente e era obrigatório, a
certa altura, ir folhear os livros à Thalia e os jornais, se ainda não os
tivesse lido. Não encontrou qualquer menção ao seu caso. Não era de admirar, a congregação
não publicitava o seu trabalho. Já chegava toda a atenção de que era vítima nas
aulas de História, por esse mundo fora, bem como os ataques cerrados de certos
historiadores que, de tempos a tempos, se lembravam da chacina, como lhe
chamavam, dos massacres dispensáveis, de uma limpeza muito bem planeada. Alguns
até embandeiravam em arco exigindo que se retirasse São Domingos da lista
oficial dos santos católicos. Coitados. Não viam o bem que esse homem fez ao mundo,
um beneficio ainda sentido nos dias de hoje e nos que virão. Endemoninhar o
homem que viu mais além e que não se coibiu de mais nada a não ser olhar pelo
bem-estar da Santa Madre Igreja e repelir as ameaças. Bem falta fazia nos
tempos que correm.
Hans não era tão obtuso. São Paulo, São Tomás de Aquino. Santo
Agostinho deviam ser todos despromovidos, juntamente com São Domingos.
Cogitava, mas não dizia em voz alta, embora dissesse outras coisas. Era por
causa de pessoas assim como São Domingos, que o padre, Hans Schmidt iria ser
julgado no Vaticano. Apesar de ter visto as suas funções suspensas, há quase um
ano, padre ainda era o termo correcto. É certo que a ele não incomodava que o
tratassem por senhor Schmidt em vez de padre Schmidt. A intimação trazia o seu
nome completo, Hans Matthaus Schmidt, antecedido pela menção de oficio. A
congregação não tinha por hábito eliminar os epítetos anteriores dos acusados.
Inocentes até prova em contrário. Apesar de não oficialmente condenado
sentia-se como no purgatório onde ainda não sabia se lhe calharia o Céu ou o
Inferno. No entanto, sabia que a congregação já escolhera. Nas palavras de
alguns historiadores anódinos, em caso de dúvida mandava-se queimar. E hoje em
dia havia muitas maneiras de queimar sem fogo, Hans Schmidt fora avisado por
familiares e amigos chegados. Cuidado com o que dizes e escreves. Isso pode ter
um preço. Candidamente, foram-se afastando, aos poucos, com os seus conselhos evitando
a sua presença. Persona non grata
talvez fosse um termo demasiado duro, mas o que dizer de alguém que deixou
de ser convidado para os círculos sociais e familiares?
A
mãe haveria de concordar com ele se fosse viva. Do pai não rezava a história,
pelo menos no seu livro. Cresceu sem uma voz masculina permanente nos arredores
da capital, em Essling, em plena Segunda Guerra Mundial. Havia desculpa para
tudo nessa altura. Não se lembrava desses tempos, ainda bem, mas lembrava-se do
Landtmann e de quando o viu com a esposa e os três filhos petizes, num dia em
que regressava do seminário, já a guerra ia longe. Que pai dedicado. Não
dispensou um único olhar a Hans ou não o conheceu. Limpava os lábios da menina
mais nova com ternura, ignorando o mais velho ali, a olhar para ele, fruto de
uma outra vida. Já não se recordava como soube que era ele. A mãe haveria de
concordar com o que Hans dizia e escrevia, ainda que fosse profundamente católica
e devota do bom papa João, que Deus o guardasse e guardava. A Ringstrasse
parecia-lhe diferente neste dia. Repleta de vidas, como sempre, mas com nuances
diferentes. Ou então seria impressão sua. Passou na frente do Landtmann e deu
por si a olhar para o interior como nesse dia longínquo em que viu o pai. Quiçá
não estaria ali agora, decrépito, engelhado pelos anos? Nunca mais o viu desde
esse regresso do seminário. Também não seria hoje. As mesas estavam quase todas
ocupadas, mas ninguém preenchia o requisito. Porventura já dormiria em paz num
qualquer cemitério de Viena. Freud haveria de gostar de Hans. Freud haveria de
gostar de o analisar, ali, numa das mesas do Landtmann, que frequentava». In
Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN
978-972-004-325-2.
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