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A
Letra Pitagórica
«(…) Fiquei descoroçoado. Andei
ao acaso pela cidade em ruínas e fui dar ao porto de mar. Um barco de Veneza
recolhia a escada de portaló, preparando-se para a largada. Viam-se passageiros
no convés a olhar tristemente a terra destroçada. Talvez alguns tivessem
deixado ali pessoas queridas! Havia lenços brancos a enxugar olhos vermelhos,
intumescidos! De súbito, no meio daqueles rostos, pareceu-me ver uma cara
conhecida. Não, não era engano dos meus olhos! Era Sara, a mulher de mestre
Jacob! O barco passava lentamente em frente de mim e eu vi com toda a nitidez
que ela me lançava o olhar, me fazia um desolado gesto de adeus e desatava num
choro convulsivo. Não me lembro de alguma vez antes disso ter chorado. Porque
seria então que naquela altura se me arrasaram de água os olhos, se eu
conhecera mestre Jacob há tão poucos dias?... Em silêncio, tendo presenciado a
minha comoção, Diogo, que me procurara pela cidade, pousou a mão no meu ombro.
Ainda olhei ao longe o barco a sair a barra. Caminhamos depois pela borda de
água e o meu companheiro, que era de poucas falas, disse-me: talvez te
interesse ler o papel que, na preocupação de preparar para a sepultura o corpo
de frei Gaspar, meti inadvertidamente ao bolso...
Era a carta do superior do nosso
convento de Évora para o nosso velho e infeliz amigo. Estava amarrotada e
rasgada do cataclismo por que também ela passara. Muito breve dizia assim:
De fr. Agostinho Jesus a seu
ir... fr. Gaspar Conceição. Saudaç... s cristãs. Muito vos rogo, irmão, tomeis
ao vosso ... noviços, Diogo e João ... entregar estas letras em mão própria ...
é a pessoa que sabeis e há tanto tempo .... Pelo seu aspecto peculiar e pelo
nome ... logo vereis qual. Sede discreto como sempre... a Inquisição (maldita) aqui. Avisai
Jacob .... urgência. Os inimigos querem apanhá-lo ..... o Senhor vos ..... e
vos abençoe.
Olhei desconcertado para Diogo,
que, no seu costumado silêncio, me retribuiu um olhar compassivo.
Tumultuavam-me no espírito os pensamentos: a conversa inicial com frei Gaspar,
a nossa visita a casa de mestre Jacob mais as falas em voz baixa deste com o
frade e com a mulher, a despedida comovente que me fizeram, as últimas palavras
de frei Gaspar balbuciadas à hora da morte, o gesto doloroso de Sara no barco
que partia e agora a leitura daqueles fragmentos da carta dilacerada, a ligar
todos os factos!... Diogo chamava-me à realidade. Deu-me a conhecer a sua
preocupação pela nossa família franciscana de Évora e quanto era urgente
pormo-nos a caminho, tanto mais que havia já rumores de, havendo ainda corpos
debaixo dos escombros, ser iminente a pestilência. Dispusemo-nos, pois, a
apressar o regresso, sem mais delongas, deixando de lado todos os nossos planos
para a longa volta que nos propuséramos dar. Depois de nos termos abastecido, encetamos
caminho esforçadamente, evitando as povoações com receio da peste, bebendo água
apenas nas nascentes dos montes ou nas fontes naturais dos vales não povoados.
Um olhar entre muitos:
«Verde pradinho cheio de belas flores
um riacho que a erva em torno
banha
uma avezinha que de amor se
entranha
acalmam bem melhor nossos ardores».
In Lorenzo
de Medici, Poesie
Qualquer
tugúrio servia para dormirmos. A primeira noite descansámos num curral velho
que encontrámos vazio numa cumeada, antes de Almodôvar, e no dia seguinte, mal
rompia a alva, púnhamo-nos de novo a caminho, por trilhos de pampilho, e nardo,
de carqueja e sargaço, cujas cores e rescendências me devolveram a minha normal
boa disposição de espírito. Ás vezes os caminhos embraveciam, a terra
apresentava-se estéril, ressequida, gretada, o deserto escaldava, o suão
queimava a vegetação precária e enfezada e estalava-nos os lábios e a pele.
Cheios de calor, sedentos, não deixávamos de andar, que não se avistava no
Horizonte sombra de árvore ou pano de água. Por isso, quando, passado o
inferno, topamos com um pobre riacho que a terra sôfrega chupava, quase não o
deixando caminhar, era de ver a pressa com que tirámos as roupas e nos banhámos
e saciámos a sede. Lavámos todas as peças do nosso vestuário e pusemo-las a
enxugar nos galhos das árvores e nos arbustos. Depois, sentados, nus, à sombra
dos frescos álamos da margem, refizemos as forças comendo do farnel, gostoso
pão de centeio, rodelas de salpicão, figos secos, e bebendo da água do regato».
In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT