segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O Prisioneiro da Torre Velha. Quare? Fernando Campos. « Não sei se para mitigar ou agravar os trabalhos presentes, me está agora a memória pungindo com tão cruel viveza os passados, como se agora os esteja a viver…»

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O Naufrágio
«(…) Que distantes se esfumaram os lanços da meninice, os prazeres da mocidade, os deleites nos jardins de Alcântara, as cortes de Portugal e Castela, a assistência dos teatros, os dias gastos em passeios, em doces conversas, as noites em primores de músicas, em agudezas de academias elegantes! Agora, cá do longe da vida, tudo parece inutilidade, diria escandalosa, ante as verdades que presentemente me ocupam o espírito. Há dias que vivo entre dois mares, na ponta da praia, à entrada do golfo de São Salvador. E o fluxo e refluxo das ondas, esta obstinada inquietação das águas, me estão sempre espelhando a minha agitação interior, nas imagens da dolorosa separação, da decisão de me embarcar à aventura, do trágico sucesso marítimo da minha primeira viagem, do naufrágio da minha vida até o dia de hoje. Tempestades é o que poderei relatar. As que de presente padeço não me permitem imaginação mais serena. De maior perigo são as injúrias do ânimo que as mazelas do corpo. Que há-de escrever um afligido senão aflições? Não sei se para mitigar ou agravar os trabalhos presentes, me está agora a memória pungindo com tão cruel viveza os passados, como se agora os esteja a viver…

Alto, largo arcaboiço, os cabelos e a barba brancos ao vento as faces vincadas de rugas de aspecto severo, curtidas da maresia, aqui está, de pé como a estátua de um herói, na ponte do galeão. General Manuel Meneses, nas ciências e valor militar homem de maior disciplina que prudência cívica. Daí o tratar, amiúde, os negócios e as pessoas com mais secura e despejo do que pede a cortesania. Entendido em genealogia, matemáticas, música, em história, que é cronista-mor do reino, é mais sábio nas matérias náuticas que todos os que neste tempo servem em Portugal e Castela. Será ousado confrontá-lo. Mas peito humano e justo, defensor e amigo dos seus subordinados. Antes de a velhice chegar, serviu na armada inglesa de apoio ao Prior do Crato. O loiro dos cabelos e a claridade dos olhos levaram, um dia, a que lhe dessem o apelido de Flamengo, nome por que são conhecidos os nórdicos. Os seus antecedentes de patriota não impedem Castela de fiar dele os mais altos cargos. Sabe que, se ele aceitar cumprir um serviço, a fidelidade à palavra dada e o espírito de disciplina nunca lhe permitirão trair. Da subjugação da pátria afirma frontalmente o seu desacordo. Os cargos que aceita, sempre alguma coisa respeita, à defesa dos interesses portugueses. Quatro vezes capitão das naus da Índia, combateu os Ingleses no alto mar foi general da armada que reconquistou a Baía em mil e seiscentos e vinte e cinco e agora aqui está ele em seu alto posto a defender as frotas portuguesas do Oriente e do Ocidente.
Homem de granito, ninguém suspeitaria que o coração se lhe move. Testemunho-o eu, que, sabendo ele de mim mais do que eu suporia e vendo minha quase puerícia, me chamou a seu serviço particular, como se eu lhe fora pajem. Mal começa a soprar uma aragem, logo se trata de desfraldar as velas e a esperança. Patrão Joaquim olha os ares, insatisfeito. É já terceira vez que em vão intentamos largar, mestre, digo-lhe. Não sopra uma aragem, quanto mais de feição. De mau presságio, este repetido impedimento. Por…, amigo!, arremeda um esgar na sua linguagem rude. Pra longe vá o agoiro». In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN 972-290-669-0.

Cortesia de Difel/JDACT