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Heresias
na Idade Média. Considerações sobre as fontes e discussão historiográfica
«(…)
Heresias, na sua origem, eram
divergências que se estabeleceram no próprio seio do cristianismo por oposição
a um pensamento eclesiástico que tivera sucesso em se fazer considerar
ortodoxo. A palavra ortodoxia, neste caso, estará em referência à ideia de um caminho
recto associado a um pensamento fundador original, no caso do cristianismo a um
pretenso pensamento que derivaria do Cristo e de seus apóstolos, bem como dos
textos bíblicos naquelas das suas interpretações que se queriam considerar as
únicas corretas. Desde já, será preciso pontuar que, seja no âmbito das
heresias do mundo antigo e da Alta Idade Média, ainda
marcadas por serem essencialmente divergências de nível teológico, seja no
âmbito das heresias que surgem na Idade Média Central e posteriormente na Baixa
Idade Média, estas últimas por vezes já prenunciando a Reforma Protestante do
século XVI, a verdade é que em todos estes casos hereges e ortodoxos, conforme
sejam chamados de acordo com o jogo dos poderes de nomear, sempre acreditaram
tanto uns como outros serem os verdadeiros defensores da verdade da fé. Ou,
para falar nos termos propostos por Duby na conferência de encerramento do congresso
de historiadores sobre Heresias e Sociedades realizado em Rougement, em 1968, a
questão é que todo o herético tornou-se tal por decisão das autoridades
ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros. O
reconhecimento deste ponto, conforme veremos, deve constituir um primeiro
cuidado para o estudo das heresias como fenómeno histórico e social.
Dentro desta perspectiva, para considerar de início a história
mais remota das heresias, vale lembrar que a partir do final do século II as
heresias começam a ser catalogadas por aqueles que conseguiram fazer prevalecer
seus posicionamentos nestes séculos iniciais de formação da Igreja Cristã,
tanto na sua vertente oriental como ocidental. No século V, já teremos um texto
importante de Santo Agostinho denominado De heresibus, que a
certa altura lista nada mais nada menos que 88 heresias, transmitindo esta
listagem para períodos mais avançados da Idade Média. Do mesmo modo, Santo
Isidoro enumera nas Etimologias, escritas no século VII, 70
heresias. Isto nos dá uma ideia do gesto
de arbitrariedade que de algum modo pauta a intenção de classificar pensamentos
heréticos que se desviam da ortodoxia, isto é, do pensamento que pretensamente
descenderia em linha recta do pensamento de Cristo ou dos primeiros Padres da
Igreja conforme as autoridades eclesiásticas dominantes.
À parte estas origens, deve-se ter em vista que o significado
da palavra heresia foi adquirindo novos matizes com os desenvolvimentos medievais. Háiresis, em grego,
significava escolha, partido
tomado, mas também o acto
de pegar. Para os teólogos, uma metáfora se produzia aqui em alusão ao gesto de
Adão e Eva que, segundo o Antigo Testamento, estenderam
a mão para pegar o fruto proibido e com isso inauguraram um pensamento
discordante em relação a Deus. Heresia corresponderia então, para os primeiros
Padres da Igreja e os seus
dignitários posteriores, a esta visão particular e discordante. Assim, de uma
palavra que no grego original poderia significar a acentuação de um aspecto
particular da verdade, passava-se no cristianismo primitivo a um sentido em que heresia se apresentava como
negação da verdade original e aceita, ou como pregação de um evangelho diferente daquele que era divulgado pelas verdades apostólicas». In José D’Assunção Barros, Papas,
Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN
978-853-264-454-1.
Cortesia
EVozes/JDACT