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Buenos Aires, 2009
«(…) Não posso acreditar é a
mesma página! Será o cigano Melquíades a fazer das suas?, murmurava para si,
antes de ler o mesmo parágrafo final que lhe saíra na sorte, anos antes, com a
avó. Sentou-se junto à janela. Lá fora, os condutores da Avenida Santa Fé
buzinavam, ansiosos para que a fila avançasse, urgentes de chegar a algum
lugar. A telefonia em cima da mesa informava que estavam impedidos por um
acidente de moto, que demorava a resolver-se e que vitimara um dos apressados
motociclistas, alguns quarteirões adiante, no cruzamento com a movimentada Pueyrredón.
Desligou o aparelho e leu, sem pressa:
Entretanto, antes de chegar ao verso
final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava
previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e
desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilónia
acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era
irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a
cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.
Aquele personagem tanto a
amedrontara como a fascinara. Melquíades carregava uma terrível previsão sobre
as gerações dos Buendía, que só seria decifrada um século depois, no momento em
que um membro da família conseguisse interpretar os seus famigerados
pergaminhos. E assim aconteceu, quando Aureliano Babilónia, da sexta geração,
descobriu a maldição: a de que duas outras pessoas dessa mesma família não
poderiam ter filhos juntas, pois nasceriam com alguma deformidade. Ora, os
fundadores da família eram primos e a consanguinidade não mais se poderia
repetir. Raquel recordava, tão triste como maravilhada, a imaginação do criador
do personagem Aureliano Babilónia, que teve um filho com Meme sem saber que era
sua tia legítima. Tendo-se repetido a consanguinidade, cumpriu-se a previsão do
cigano: o filho da sétima geração nasceu com um rabo de porco e morreu devorado
por formigas, acabando para sempre com a árvore genealógica da família.
Pouco tempo depois daquela
conversa, a avó morreu, a transbordar de uma saúde tardia, a escassos dias de
cumprir cem anos, uma mistura de bênção e maldição. Raquel só se lembrou do
presente da avó Cleide depois de a anciã partir. O título e a dedicatória
atormentavam-lhe o sono e, por isso, apressou-se, voraz, a ler a história dos Buendía
nos dias que se seguiram ao funeral. Ninguém mais lhe tirava da cabeça que a
avó não quis viver mais de cem anos, evitando uma qualquer desconhecida
danação. E que a oferta daquele livro, com as palavras dedicadas à avó escritas
pelo autor, com aquela precisão, não fora absolutamente inocente.
Com uma lágrima arredia de
saudade a salgar-lhe as memórias, encostou Cem Anos de Solidão ao peito
e sentiu o coração acelerado esmurrar-lhe a capa, a ponto de o confundir com as
pancadas que, percebeu subitamente, vinham da porta do gabinete. Raquel,
podemos falar? A rapariga suspirou, retirou lentamente o volume do peito e
colocou-o delicadamente no centro da mesa. Olhou para a chefe, ainda perturbada
pelas memórias. A directora da livraria entrou sem esperar e só parou ao seu
lado. Era uma mulher magra, de rosto fino e delicado, cabelo cingido formando
um puxo, olhos castanhos enormes e tristes. Deteve-se momentaneamente a olhar,
em silêncio, para o livro acabado de desembrulhar pela adjunta. Fora ela quem
encomendara cem exemplares, assim que soubera da reimpressão da primeira
edição. Desculpa, Carmela. Estava distraída. Não faz mal. Já pensaste no
assunto?, insistiu, com olhar vago e semblante desconsolado.
Já... Quer dizer, ainda não. Não
consegui falar com o Marcílio. Só chega amanhã de Rosário. Sabes que não devo
tomar a decisão sem falar com ele. Carmela respirou fundo. Raquel olhou-a de
relance e viu-se cúmplice da sua tristeza. Com pouco mais de sessenta anos, era
uma mulher respeitada nos círculos culturais bonaerenses, mas que se via
obrigada a abandonar a carreira de directora da livraria El Ateneo para
cuidar da mãe, de quem era a única família, acamada com uma doença neurológica,
numa distante aldeia da Patagónia.
O mal da mãe de Carmela e a
obrigação familiar de lhe acudir confabularam a oportunidade de Raquel. Todos a
viam com aquele futuro e, na verdade, ela nunca escondera que gostaria, um dia,
de ser a directora da fantástica livraria que o insuspeito The Guardian elegera,
no ano anterior, a segunda mais bela do mundo. Para tirar as teimas, ainda
haveria de visitar a livraria holandesa que o jornal escolhera como a mais
recomendável. E, quem sabe, a portuguesa que ficara logo atrás. Mas nunca
imaginara tornar-se directora da El Ateneo tão cedo, com vinte e nove
anos mal acabados de celebrar. Saio no final do mês, como sabes, continuou
Carmela, pegando no exemplar pousado sobre a mesa e folheando-o ao acaso. Os proprietários
deram-me carta-branca para escolher quem me vai substituir. Para além da
indemnização pelos anos de trabalho, foi a única coisa que lhes pedi. A pensar
em ti, claro». In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos Aires, Porto Editora, 2019,
ISBN 978-972-003-177-8.
Cortesia de PortoE/JDACT